quinta-feira, 7 de abril de 2016

História gótica

32. Correu mal.
Fosse por falta de habilidade, fosse por excesso da ingenuidade daqueles que pensam que tudo se consegue quando se quer e se tem certas qualidades, Dragomir viu as suas ambições esfumarem-se quando pensava já ter atingido o seu alvo. A jovem escolhida era bela e tonta, como planeara o boticário. O pai era rico e devotado à filha, também de acordo com o plano. A mãe, vaidosa e altiva, poderia ser conquistada à força de lisonja. Às irmãs bastava mantê-las suficientemente interessadas para que fizessem sentir à jovem menina a sua inveja, despertando nela o prazer de ser a escolhida e confirmando o valor de quem a escolhera. Passaram-se meses de visitas e olhares, de bombons e passeios, de bilhetes e perfumes. Dragomir tornou-se presença assídua nos chás e nos jantares. O senhor von Palzer, pai da pretendida, parecia apreciar a conversa do jovem bem escanhoado e sempre a par das notícias mais recentes da bolsa e dos gabinetes. Apresentou-o aos sócios e amigos. Ofereceu-lhe charutos, e ao acender o primeiro Dragomir sentiu o aperto na garganta e a tontura de felicidade que não sentira quando pela primeira vez a menina von Palzer lhe permitiu que lhe beijasse as pontas dos dedos. Começava a sentir-se em casa quando se sentava à mesa de jogo para uma partida de whist, ou quando o mordomo lhe perguntava se podia voltar a encher-lhe o copo. O dia na farmácia só não custava mais a passar porque Dragomir se perdia a recordar cada detalhe da noite anterior e a antecipar todas as delícias da noite seguinte. Continuava a ajudar o farmacêutico, mas agora com outras funções. Era um assistente a quem pouco faltava para ter o seu próprio certificado, e já não um moço de recados. Mas esta ascensão parecia-lhe tão mesquinha que não se demorava a reflectir sobre o seu futuro na profissão. Estava convicto de que o seu futuro nada teria a ver com a sua vida presente. Esta não era mais do que o fantasma diurno que à noite as luzes do palacete dissipavam permitindo-lhe ver as cores autênticas da realidade. Era o mundo das pequenas maleitas e dos pequenos eventos, grãos de pó face às aventuras sempre prometidas no outro, e face aos estados de alma sensíveis e grandiosos dos seus habitantes. Que interessava a dor artrítica da dona Ludmila quando se podia assistir ao sofrimento espiritual de Madame von Palzer ao conhecer o destino da heroína trágica do novo romance de T., a nova glória das letras europeias. Que interessavam os tostões com que ao fim do dia o patrão se afligia se o senhor von Palzer e os seus amigos apenas falavam em milhares investidos num dia e transformados em milhões no outro. Que interessava a festa do bairro se havia bailes de máscaras e óperas onde o recebiam com luxo e como um igual. Foi num destes bailes de máscaras que Dragomir abordou pela primeira vez junto da menina von Palzer o assunto do casamento. A menina deu um risinho por trás da máscara e abanou com mais força um leque de penas que quase fez Dragomir espirrar. O pretendente, precipitado como são os ambiciosos que confiam demasiado na sorte com que são bafejados porque acreditam merecê-la, interpretou a resposta da menina como a expressão de um consentimento envergonhado, como convinha a uma jovem daquela classe naquela situação. Na noite seguinte, solicitou ao senhor von Palzer uma entrevista a sós. Antes de passar ao escritório do magnata, pensou por segundos na estranha distracção da menina von Palzer, que nem sequer um olhar trocou com ele e parecia tão tranquila como nos outros dias. Decidiu mais uma vez interpretar como timidez esta falta de agitação por parte de uma rapariga prestes a ver concretizados os seus sonhos amorosos. "Então, rapaz, contaram-me uma história divertidíssima." Dragomir, que queria ser o primeiro a falar, esperou com o coração aos pulos. Mais alguns minutos e estaria a brindar à sua nova vida, aquela para que se preparava desde a infância. "Disse-me a minha filha Natasha - e tive que lhe pedir que repetisse umas três vezes, tais eram as gargalhadas da mãe e das irmãs, e as dela também - que o senhor lhe pediu autorização para falar comigo,". Neste momento, o senhor von Palzer viu-se obrigado a interromper o que dizia por causa de um soluço de hilaridade e, antes de ser dominado pela gargalhada que não conseguiu reprimir, terminou, "e pedir a mão dela em casamento!" Quando, alguns minutos mais tarde, Dragomir descia as escadas do palacete que lhe abrira as portas apenas para as fechar agora com risos e escárnio, não era ainda capaz de pensar naquilo que viria a concluir depois, que não passara de uma curiosidade para aquela gente cruel e sedenta de diversão, o novo animal de estimação enviado da propriedade na província, a nova engenhoca chegada de Londres. O que Dragomir nunca conseguiria perceber, porque para isso seria necessário ter a perspicácia que lhe permitiria ver o ridículo da sua pretensão,  é que a entrada para a classe dos ociosos seria sempre uma graça concedida e nunca uma honra conquistada, e que era tal o espanto que na família von Palzer o seu inocente atrevimento causou, que a reacção àlacre daqueles era tão inocente como a causa dela, e nada tinha de escárnio.

1 comentário:

  1. Costuma "correr mal" quando o preservativo se rompe, antes. Neste caso parece nque terá corrido mal por não se ter rompido!

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