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sábado, 23 de abril de 2016
História gótica
42. "Aqui, preparamos as cabeças."
Com um golpe seco, o corcunda forçou a tampa de um caixote largo onde se amontoavam escalpes. "Começamos por retirar cabelos", explicou. "Em seguida, colocamos cada cabeça numa caixa de vidro. E deixamos aos vermes o resto do trabalho." "Temos uma boa quantidade de vermes armazenados. E este ano estamos a ter uma grande colheita, estão gordos os nossos vermes. Parece bom mas não é. Quer dizer, as coisas boas não são sempre só boas. Por exemplo, haver muitas cabeças é bom. Vermes gordos e satisfeitos é bom. Mas vermes satisfeitos funcionam pior, têm menos incentivos para limpar ossos. Logo, vermes gordos é mau. Bom para os vermes, mau para nós." Enquanto falava, o corcunda ia colocando cabeças humanas dentro de caixas de vidro cheias de bichos. Em breve, os bichos cobriam as cabeças, e os tecidos moles começavam a desaparecer. As pálpebras eram das primeiras coisas a ir. "Muito gostam vocês de olhos, malandros." O corcunda falava com os vermes como uma tia anafada falaria com sobrinhos pequenos a quem oferecesse bolos, fumegantes e a cheirar a canela. "Os verdes, principalmente. Já reparei, seus patifes. Não me escapa nada!" Alguns vermes passeavam pelos dedos da mão do corcunda, que os ia colocando dentro das caixas. "Estas são novas, já vou ver como estão as que deixei aqui no mês passado. Espero que tenham trabalhado bem, senão." O corcunda riu como se os vermes lhe tivessem dado uma resposta galhofeira. "Eu sei, eu sei, vocês nunca me deixam mal. Fica tudo impecavelmente limpo. Ainda me comovo quando olho para uma cabeça recente, ainda coberta de pele e músculo, e depois para uma cabeça que já passou pelas vossas mãos. Pelas vossas mandíbulas!" O corcunda deu um risinho, sacudiu os bichos que ainda tinha nas mãos para dentro de uma das caixas, e dirigiu-se para um balcão coberto por um lençol. "Que arte! Que técnica! Quem mais seria capaz desta perfeição, desta subtileza!" O corcunda ia exclamando elogios e estalando a língua à medida que retirava o lençol e olhava para caixas de vidro que continham caveiras brancas como mármore. "Como mármore! Alabastro! Sublime!" A voz do corcunda, naturalmente aguda, subiu dois tons por cada contemplação extasiada. "E como reflectem a luz, e como absorvem as cores! Esta parece quase dourada, aquela vermelha." Com a manga, ia limpando qualquer grão de pó que tivesse conseguido atravessar o lençol e ousado pousar sobre as caixas de vidro. "Madame vai ficar contente, Madame é uma perfeccionista. Para Madame, só o melhor serve!" O corcunda levou uma das mãos ao peito e, de cada vez que dizia Madame, fechava os olhos com volúpia. "Vai ser difícil escolher, estão todas magníficas." "Posso levá-las todas, Madame é uma artista, vai compreender, certamente. Uma pessoa sensível fica hesitante perante tanta beleza, mas eu não tenho o gosto delicado de Madame, a sua capacidade de discernir detalhes que mudam tudo, pequenas nuances que transfiguram os objectos e que só o génio nos faz ver. O que parece igual é incomensuravelmente diverso se formos capazes de notar como aquela curva quase invisível faz ou desfaz uma totalidade harmoniosa, como aquela sombra transforma uma superfície banal num cenário misterioso." De olhos fechados, o corcunda estremeceu antes de começar a colocar caixas e mais caixas de vidro em cima de uma mesa com rodas que empurrou para a saída. "Madame vai ficar contente. Madame vai compreender."
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