O recente episódio do pedido de exoneração do Chefe do Estado-Maior do
Exército, alegadamente em função do modo como o Ministro da Defesa
Nacional, Azeredo Lopes, o terá “repreendido publicamente”, através de
um comunicado de imprensa em que afirmava que as supostas discriminações
em função da orientação sexual no Colégio Militar deviam ser objecto de
aturada investigação, é um caso paradigmático de que, mesmo após 40
anos de vigência da Constituição de 1976, ainda permanecem equívocos
quanto ao modo de relacionamento entre as Forças Armadas (FA) e o dito
“poder político”.
A Lei Fundamental que os Portugueses se deram a
si mesmos, através da representação democrática dos deputados à
Constituinte, sobretudo com a 1.ª Revisão Constitucional de 1982,
terminou com a inicial supremacia das FA sobre o poder político civil, o
que se compreende tendo em conta a génese da Revolução de Abril, o
“Manifesto do MFA” e o “Pacto MFA-Partidos”. Todavia, extinto o Conselho
da Revolução e entrando Portugal na normalidade democrática, em
especial com a preparação da adesão às então CEE, ficou claríssimo no
texto constitucional e nas leis ordinárias que as FA se subordinam
democraticamente aos órgãos de soberania.
Assim, o seu Comando
Supremo foi colocado nas mãos do Presidente da República, o qual preside
ao Conselho Superior de Defesa Nacional, bem como nomeia, sob proposta
do Governo, o Chefe do Estado-Maior-General e, também ouvido este, os
Chefes do Estado-Maior dos três ramos das FA (cf. artigos 120.º, 133.º,
al. p), 134.º, al. a), e 274.º, n.º 1, da CRP). Em matéria legislativa
essencial a este órgão do Estado – que não de soberania, sublinhe-se –
reservou-se a competência absoluta para a Assembleia da República, o que
significa que lhe foi atribuído relevo tal que nem através de lei de
autorização pode o Governo sobre ela legislar (art. 164.º, al. d)). As
específicas funções das FA estão definidas no art. 273.º, n.º 2:
“garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições
democráticas e das convenções internacionais, a independência nacional, a
integridade do território e a liberdade e a segurança das populações
contra qualquer agressão ou ameaça externas.”. É expressa a sua
subordinação ao poder político democrático: “[a]s Forças Armadas
obedecem aos órgãos de soberania competentes, nos termos da Constituição
e da lei.” (art. 275.º, n.º 3).
Não oferece dúvidas, pois, que
qualquer comunicado sobre alegados factos ocorridos em estabelecimento
de ensino e formação tutelado pelo Exército não exorbita as funções do
Ministro da respectiva pasta. Coisa diversa é se politicamente tal foi
avisado. Não parece ter sido. Pela delicadeza da matéria e pelo
essencial equilíbrio de “checks and balances” entre os políticos e os
operacionais, o dito comunicado – por certo bem-intencionado e com o
desiderato de afirmar a luta contra a discriminação em que todos estamos
empenhados – não deixa de comportar a leitura de um “puxão de orelhas”.
A existirem, ocorrem em privado, do mesmo modo que o comentário a
notícias em áreas da governação como esta deve ser visto em conjunto
entre o Ministro da Defesa e as chefias militares.
Se o Sr.
General Carlos Jerónimo se sentiu ultrapassado e/ou ferido na sua honra,
não lhe restava outra solução. Já não é jurídico-constitucionalmente ou
suportável do prisma político que a chamada “família militar” se exalte
e, em alguns comentários, pareça esquecer o que acima se vincou: os
militares, essenciais ao Estado de Direito, recebem instruções e ordens
político-administrativas – que não técnico-operacionais, por certo – do
Governo, do Parlamento e do Presidente da República. Do mesmo passo que,
em crimes de natureza militar, as FA cumprem escrupulosamente as
decisões dos Tribunais que, desde a Revisão Constitucional de 1997 – e
bem –, só constituem categoria jurisdicional autónoma em tempo de
guerra. Em tempo de paz, esta espécie de delitos é julgada nos Tribunais
judiciais, com intervenção de juízes militares, a par dos civis.
Se todos cumprirem as suas competências, com respeito
interinstitucional e com tacto político, só teremos a ganhar com umas FA
que compreendem que estar subordinadas aos órgãos de soberania não é
qualquer “capitis deminutio”; ao invés, é penhor da sua própria
liberdade e de todos os cidadãos. Do mesmo passo que a qualquer Ministro
– e os últimos dias têm sido prolixos – se exige “sensibilidade e bom
senso”. Ao fim e ao cabo, os “middle names” de qualquer membro de um
órgão de soberania responsável pelo poder executivo…
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