sexta-feira, 8 de abril de 2016

História gótica

34. "Arruinado, consumido pela dor, alquebrado pela vergonha, deixei a cidade e vagueei pelo país durante anos.
Aceitei qualquer trabalho que me aparecesse, nenhum me parecia demasiado indigno ou demasiado pesado. As minhas mãos de unhas polidas foram ficando duras e grosseiras. As minhas camisas reduziram-se a uma, suja e remendada, como sujos e remendados ficaram o meu casaco e as minhas calças. Troquei os sapatos de verniz por umas botifarras que deixavam na lama pegadas largas e fundas, e que me mantinham os pés secos. Não foi fácil desembaraçar-me de um calçado tão inútil. Nos campos, por onde eu principalmente andava, dá-se pouco valor ao que não serve para nada, e em lugares tão pobres como as nossas aldeias ninguém cobiça senão a galinha gorda do vizinho ou a lã abundante do inimigo de décadas. Não passa sequer pela cabeça de ninguém destacar-se dos seus congéneres através da ostentação da elegância ou de algo que se lhe assemelhe. E, com a excepção do ouro, sob a forma de argolas para as orelhas e cordões, quanto mais grossos melhor, ninguém se enfeita e só a fertilidade dos campos e dos animais é sinal de sucesso. De mim, os camponeses queriam apenas saber se era forte e capaz. Ou se sabia histórias e canções para marcar o ritmo da jorna. Mas eu não tinha histórias para contar, o que queria era esquecer tudo. Nem canções. Quase não falava. Ninguém pode afirmar que me tenha visto sorrir. Plantei batatas e semeei trigo, pouco diferente fui de uma mula ou até de um arado. Consertei panelas e cadeiras, nada se perde, nada se deita fora. Parti lenha, carreguei-a, ajudei a vendê-la. Construí estábulos e barracões. Escovei cavalos. Alimentei porcos. O único trabalho que nunca aceitei foi o de matar animais. Repugnava-me o sangue misturando-se com a terra e formando pequenos rios que avançavam sem obstáculo. Doíam-me os gritos e os olhos aterrados. Não sei se esta reacção se devia à imagem da minha mãe ensanguentada, que fui o primeiro a ver, e dos seus olhos abertos, onde ainda se lia a incredulidade e onde se instalava já o medo. Não admira que em tantos lugares se tape os olhos dos mortos com moedas, e que o nosso primeiro instinto perante um cadáver seja cerrá-los. Os olhos dos mortos reflectem a forma da sua morte e as suas agonias. E todos morreremos e todos tememos o momento em que morreremos, o sofrimento e a mais que provável aniquilação. Queremos saber o menos possível sobre as infinitas formas de morrer, porque saber impõe ou que nos preparemos, ou que soframos agora. Ninguém quer estar preparado para o fim dos fins, e ninguém quer viver como se esse fim tivesse já chegado e se demorasse, cruel. Atormenta-nos mais a antecipação da nossa morte do que a memória dos crimes que cometemos. Mais a nossa perda do que as nossas perdas. A certa altura da minha peregrinação, senti uma ânsia de regressar à cidade. Dirigi-me, irreconhecível por trás da barba e dos cabelos hirsutos, para l., onde cheguei depois de muitos dias de caminho. E encontrei-a numa esquina, dobrada sobre si própria e com aspecto de quem tinha andado ainda mais do que eu. Alguma da sua beleza ainda podia ver-se através do cansaço, das rugas precoces, das cicatrizes. Eu sabia que ela tinha sido bela porque a conhecia muito bem, porque muitas vezes, antes da desgraça que se abatera sobre a minha família, lhe segurei a mão. Iulia fora minha noiva."

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