2. Já perdeu a conta às voltas que deu à cela.
Arrastou
de tal modo a perna esquerda, quase desfeita pela lâmina de um turco no Ataque
Nocturno de Târgoviste, que a sandália de couro ficou por um fio. Não bastaram
os mais de vinte e três mil turcos empalados porque um sultão exigiu o
pagamento da jizya a um príncipe da Ordem do Dragão. Foram empalados depois
outros vinte mil. Com um gesto da mão afastou a recordação do sangue e dos
gritos de tantos homens mortos, e mortos de maneira tão atroz. Magro, ossudo,
alto, vestido com uma túnica de estopa suja, de uma cor que pode ter sido
cinzenta, ou castanha, ou branca, e com uma faixa larga com que prende à
cintura um punhal e um crucifixo, aproxima-se da janela estreita aberta na
pedra e perscruta a noite lá fora, forçando os olhos e tentando ver alguma
figura a vaguear pelas ameias. Mas só se ouvem os ruídos selvagens dos animais
nocturnos. Passa os dedos pela cicatriz que lhe atravessa o rosto, como faz
sempre que se perde em raciocínios difíceis e conclusões malsãs. Pensa nos
longos séculos que o esperam e na função terrível que executará sem saber até
quando. Batem, de repente, à porta pesada da cela com pequenas pancadas e ela
abre-se com um rangido aumentado pelo total silêncio do interior do castelo.
Entra uma mulher pálida. À distância, parece ser jovem. Mas quando se aproxima
da luz inconstante do archote, mostra tanto uma face lisa como uma face
enrugada. Parecem cair-lhe sobre os ombros cabelos esparsos e cinzentos, mas
também uma cabeleira escorrida, preta como as asas do corvo e com um brilho
azul. Os olhos são à vez esvaziados e brilhantes, perspicazes e baços. Nas mãos
as veias grossas contrastam com a pele imaculada, e tanto é de alabastro o
pescoço como de pergaminho gasto. Mantêm-se os mesmos o vestido prateado
coberto por uma capa cor de vinho, e o medalhão oval. "É preciso fazer
alguma coisa", diz.
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