quarta-feira, 30 de março de 2016

História gótica

23. Em frente da lareira, uma daquelas lareiras onde sete ou oito pessoas cabem de pé, um cão enorme estendia-se e secava o pêlo molhado.
Sentado numa poltrona secavase também Anghelescu, um dos esfíngicos habitantes do castelo. Não acompanhara os outros até ao mausoléu. Ficara junto do portão do cemitério, apesar de ser puxado pelo cão, quase do tamanho de um cavalo. "Quieto, Cosmin." A voz imperiosa não precisou de grande volume para se fazer obedecer. "Vamos." Voltaram os dois para trás e entraram no castelo. "Eles que tratem do assunto." O cão levantou a cabeça com um ganido, e pouco depois entrou na sala um criado, ou assim parecia, carregando um tabuleiro de prata com um copo de pé alto e um decantador cheio de vinho vermelho muito escuro. Com a mesma voz imperiosa e baixa que usara com o cão, Anghelescu ordenou ao criado que pousasse o tabuleiro numa mesinha próxima da poltrona. "Sai." O criado fez uma vénia. Sem sequer se atrever a perguntar se podia servi-lo em mais alguma coisa, recuou, sempre de costas para a porta e virado para Anghelescu. Saiu. Benzendo-se, quase correu para as escadas que conduziam à cozinha nas caves, onde duas mulheres decrépitas mexiam uma mistela indefinida nuns grandes caldeirões de ferro. Estavam encavalitadas em bancos de madeira para chegarem à borda. O ar alquebrado causava a impressão de que estavam prestes a tombar para dentro dos recipientes avantajados. A cozinha era um lugar escuro e sujo, de tectos altos em abóbada, iluminado pelas chamas bruxuleantes dos fogões, com panelas penduradas nas paredes. Facas e colheres de sopa estavam espalhadas por todo o lado. Havia pilhas de pratos junto de uma pia larga. Tudo era gigantesco naquela cozinha, menos as duas velhas e o criado, tornados ainda mais pequenos pelos objectos que os rodeavam. "Depois destes anos todos, ainda sinto arrepios", disse Gavril. Era este o nome do criado, um homem de meia idade com cabelo muito preto e um inesperado bigode ruivo. "Malditas criaturas." Na cara de Gavril misturavam-se nojo e medo. "Nunca se sabe que coisa obscena vão fazer a seguir." "Aquela sala é impossível de limpar, são camadas e camadas de muitos séculos de...". "Cala-te", guinchou uma das velhas. O criado parecia grato pela interrupção, como se enunciar em voz alta o que se passava na sala que tinha mencionado fosse sufocá-lo em vez de o libertar de um peso. "Acho que esta noite não vai ser preciso mais nada." "Saíram todos, foram ver o que aconteceu ao outro." As mulheres continuavam a mexer a mistela com as colheres de pau, grandes como remos de galeras, como se não o ouvissem. "Menos o Anghelescu." "E o cão. O bruto." "E não pára de chover. Não vou conseguir pregar olho, com a tempestade que aí vem vai acontecer alguma coisa. É sempre assim."

3 comentários:

  1. Pode o leitor imaginar que obscenidades se passavam na tal sala e a que se deviam as camadas e camadas acumuladas no chão durante séculos... orgásmos... deliciosos orgásmos gastronómicos, causados pela obscena ingestão de toneladas de gelado de groselha. Coisa assim ao jeito de "Grande Farra" com garinas estendidas nuas, sobres o taptâme persa, totalmente barradas de guloseimas... uma obscenidade completa!

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  2. Eu fiquei com vontade de conhecer o resto da história...

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