27. Estas saudades sentira-as em outras ocasiões, mas não
sabia de quê. Só sabia que eram fortes, e melancólicas, e impotentes.
Por vezes
as saudades são alegres, porque aquilo de que se tem saudades está prestes a ser
reencontrado. E as saudades de coisas passadas ou de pessoas mortas estão
mescladas de recordações que fazem sorrir, as recordações daquilo que nos faz
desde logo ter saudades do que se perdeu, de quem se perdeu. Mas saudades sem
objecto são terríveis. E não é apenas por não se saber do que se sente falta,
do que se gostaria de não ter perdido, do que se quereria reencontrar. As
saudades sem objecto são saudades puras. Nenhuma memória feliz as acompanha.
Nenhuma esperança. Só o vazio que nunca foi preenchido e que nunca se
preencherá. "Se ao menos eu conseguisse descobrir o que é", pensava
Viorica, "talvez pudesse fazer alguma coisa." Assim, nem podia
acender uma vela por alguém que já se foi. Ou por um tempo esgotado. Da
infância não era. Viorica lembrava-se de ser pequena e da mãe sempre sisuda.
Sempre cansada. Do pai soturno. Dos irmãos quezilentos e ruidosos, que atiravam
pedras aos melros e viviam como se ela não existisse. Do tempo em que Stepan,
que agora era seu marido, a cortejara, se é que se pode dizer que a cortejara,
também não tinha saudades. Numa aldeia pequena que apenas quer sobreviver, os
casamentos são etapas pragmáticas por onde toda a gente passa. Este fica bem
com esta, esta com aquele. Não há o luxo do romance, nem se sabe o que isso
seja, ninguém lê e por isso ninguém imagina que as paixões possam ser um motivo
para escolher, que haja escolha e que ela tenha a ver com sentimentos vápidos.
O padeiro casou com a filha do agricultor porque assim se resolvia o
fornecimento de cereais para fazer o pão. O taberneiro casou com a filha do
ferrador porque ela estava habituada a pôr na ordem os homens que se reuniam na
forja do pai para discutir as qualidades dos cavalos e das ferraduras. Ela
casara com um mineiro porque o seu pai e os irmãos eram mineiros também e não
lhe custaria continuar a fazer o que sempre tinha feito. Stepan sentava-se na
sala com o pai, os dois quase sempre calados. Nem olhava para ela. O que o pai
precisava de saber sobre o homem a quem entregaria a filha sabia-o pelo que via
na mina. Stepan era enérgico a empurrar pelos trilhos os vagões carregados de
carvão. Era corajoso a avançar pelos novos túneis que representavam novos
perigos. Nunca se queixava. Não bebia. Um cachimbo à noite não se podia dizer
que fosse um vício. Foi rapidamente aprovado, a mãe arranjou o que havia a
arranjar no vestido amarelado que ela e as irmãs já tinham usado nos seus
casamentos, chamou-se o padre e foram servidos bolos. No baile que se seguiu à
cerimónia arranjaram-se mais enlaces e calcularam-se mais conveniências.
Lembrava-se de ter ficado triste, que arrelia era experimentar tantos
sentimentos, medo na infância, resignação na adolescência, tristeza no
casamento, saudades agora. De quê, perguntava-se. Era incómodo também querer
saber, seria tudo mais fácil se apenas sentisse sem pensar nisso, talvez elas
desaparecessem, as saudades que a faziam levantar os olhos para o castelo.
Talvez Viorica não sentisse própriamente saudades, mas sim... a falta de motivos que a fizessem sentir saudades.
ResponderEliminarTalvez lhe tivesse faltado aquele encontro com o inesperado forasteiro, que sempre sonhara ir acontecer quando ao final do dia se dirigia com a "malhada" e a "rabina" até à margem do ribeiro, para se dessedentarem.
Certa vez ainda julgou escutar um rumor e voltando-se bruscamente, pareceu-lhe avistar um vulto, uma sombra fugaz, passando por trás dos arbustos que bordejavam o ribeiro. Nesse fim de dia o coração bateu-lhe mais acelerado, sentiu que as pernas lhe fraquejavam um pouco e à noite, deitada na enxerga, aconchegada nos velhos cobertores, adormeceu sonhando com um rosto masculino de olhar meigo e uns lábios finos que tocavam os seus. De manhã, ao acordar ainda sob o efeito hipnótico desse sonho, estendeu o braço e sentiu que o espaço vazio ao seu lado da cama, se encontrava estranhamente morno, como se até há pouco tempo, outro corpo tivesse permanecido deitado junto ao seu.