Nas últimas semanas, tenho lido repetidas vezes o argumento de que só o mérito deveria contar para a eleição de Secretário-Geral das Nações Unidas (SGNU). O argumento adianta que, portanto, o género ou a nacionalidade do candidato não devem contar. Normalmente, leio-o em textos de quem está a defender que deveria ser António Guterres o escolhido. Ora, vou tentar ignorar (pelo menos à partida) a discussão sobre se é correcto ou não haver quotas em política (fica para outro post), e vou assumir (à partida) que Guterres é de facto e inequivocamente o “melhor” (digo à partida, porque é inevitável ir dar a estes dois aspectos). Mesmo partindo deste ponto, há um facto que tem estado estranhamente ausente das discussões, talvez por ignorância ou por conveniência. Mas é um facto que torna a natureza do cargo de SGNU mais clara.
Facto: o mérito NUNCA foi o único factor que contou para a nomeação do Secretário-Geral das Nações Unidas. Na verdade, um dos principais factores que sempre contou para a eleição foi a nacionalidade, ou mais especificamente a região do globo. Há um acordo implícito entre os estados-membros que o secretário-geral deve ir rodando pelos vários continentes/regiões.
Desde os anos 70, estes foram os secretários-gerais da ONU:
- Kurt Waldheim - Western Europe
- Javier Perez de Cuellar – Latin America
- Boutros-Boutros Ghali - Arab Africa
- Kofi Annan - Sub-Saharan Africa
- Ban-ki Moon – Asia
Há já alguns anos que se vinha a falar de que o próximo SGNU deveria vir da Europa de Leste (que nunca teve um SG, mesmo após o fim da Guerra Fria). Mas, de qualquer forma, o que importa realçar é que houve uma rotatividade perfeita entre os continentes. Isto significa que o mérito nunca foi a única coisa que contou. O objectivo nas eleições de SGNU nunca foi eleger sempre a pessoa com mais mérito. Basta reconhecer que era altamente provável que, por exemplo, “na vez” da América do Sul a pessoa com mais mérito estava, na verdade, noutra região qualquer. Talvez o caso mais flagrante seja o de Boutros-Boutros Ghali (egípcio cristão copta). A sua nomeação e eleição ocorreram após um grupo de 102 países (que incluía muitos países Africanos e contava com o apoio da China) ter afirmado que bloquearia qualquer candidato não-africano. Como tinham votos suficientes na Assembleia Geral para vetar qualquer escolha e ainda o voto da China no P5, foram bem sucedidos: o Conselho de Segurança propôs, de facto, um Africano, e ele foi eleito. No final do seu mandato, no entanto, Boutros-Boutros Ghali não conseguiu ser reeleito. A Administração Clinton não gostava muito dele. Ghali não apoiou os bombardeamentos da NATO na Bósnia, ao contrário de Kofi Annan, e a somar a isso teve um mandato repleto de acções controversas da ONU: a desintegração da Jugoslávia, a crise na Somália e o genocídio do Rwanda. Bill Clinton, na altura pressionado pelas eleições presidenciais de 1996, decidiu que os E.U.A. vetariam a renomeação de Ghali. Foi então eleito outro Africano, o mais popular Kofi Annan. Mas a eleição de Kofi Annan mostra mais uma vez que não é o mérito apenas que conta. Afinal de contas, Annan, conduzido pela primeira vez em 1997, tinha sido precisamente o Head of Peacekeeping Operations durante a crise da Somália e o genocídio no Rwanda, dois dos maiores fracassos de sempre da ONU.
Da mesma forma, se um grupo de 102 países se juntasse agora e ameaçasse bloquear qualquer candidato que não seja mulher, a ameaça seria igualmente válida e necessária considerar. Se uma nova administração Clinton bloqueasse logo no P5 qualquer candidato não mulher, isso era perfeitamente legítimo. Claro que um outro grupo de países também pode ameaçar bloquear qualquer candidato não homem. E aí há um impasse. E, sendo assim, seriam precisas negociações.
A lição a retirar disto é que o cargo de SGNU não é um cargo para o qual o mérito seja o único factor determinante. E, a meu ver, não há nada de errado nisso. Porque não é um cargo técnico - é um cargo intrinsecamente político. Aliás, a própria eleição não pode ser comparada a uma entrevista de emprego em que uma empresa avalia os currículos profissionais e características pessoais dos vários candidatos e escolhe o melhor. Estamos a falar de um cargo cuja nomeação depende de negociações e compromissos entre nações. Nações essas que têm interesses (económicos, religiosos, políticos, bélicos) diferentes nas relações internacionais. Nações que têm visões do mundo diferentes, mas que ainda assim concordaram em fazer parte de uma organização que inclui países com os quais não sentem qualquer afinidade, e muitas vezes contra os quais têm mesmo antagonismo e conflitos armados. A legitimidade e sobrevivência da ONU, como qualquer norma internacional, dependem dos estados-membros continuarem a reconhecer-lhe legitimidade. Parte da legitimidade advém da representatividade dos seus órgãos. Isso talvez nos dê outra visão acerca das negociações e compromissos que envolve: atingir um compromisso entre interesses numa negociação entre Estados não se trata de termos uma visão cínica das relações internacionais, trata-se de garantir a própria sobrevivência da ONU enquanto instituição. Mais, as próprias nações são elas próprias heterogéneas a nível doméstico, o que só adiciona mais um nível ao jogo político. Nas democracias e nas ditaduras, há sempre uma oposição política interna aos representantes que vemos no palco da ONU, donde aquilo que os líderes fazem no palco internacional também pode ser influenciado e motivado pelo jogo doméstico.
Assim, a partir do momento em que reconhecemos que o SGNU é um cargo político, o mérito torna-se subitamente um conceito vago e pouco útil. O que é o mérito num cargo como SGNU? O que é melhor: ter uma carreira medíocre como chefe de governo de um Estado e uma carreira brilhante como funcionário burocrático de uma organização internacional ou vice-versa? O que é que prepara mais: ser diplomata ou burocrata? E será que Guterres é mesmo inquestionavelmente o candidato mais qualificado? Abandonou o governo de um país pacífico com a justificação de que esse país estava “um pântano”. E quando tiver de moderar o verdadeiro pântano que é a Assembleia Geral das Nações Unidas com todas as nações do mundo e centenas de desentendimentos? Será que o trabalho que realizou como Alto Comissário para os Refugiados foi realmente excelente, ou será que outro qualquer burocrata inteligente e qualificado teria feito mandatos em tudo semelhantes? Não tenho a resposta a estas perguntas. A acrescentar à dificuldade de avaliar o mérito em política (quando é que é tempo de procurar consenso ou de afirmar valores com determinação? Que características queremos privilegiar?), temos a dificuldade de o definir.
Para mim, a capacidade de representação faz parte do mérito de um político. Como disse acima, numa organização internacional esta característica é especialmente importante, uma vez que a legitimidade e sobrevivência da organização dependem ainda mais da sua representatividade. Se nunca tivesse havido um secretário-geral africano no passado, nem perspectivas para a sua eleição no futuro, seria natural que os países africanos se sentissem diminuídos e não representados e, com o tempo, atribuíssem menos legitimidade à ONU e às suas decisões. Da mesma forma, não me parece que ignorar a representação de metade da população mundial seja a estratégia mais inteligente. A verdade é que nada explica que nunca tenha havido nenhuma mulher SGNU: nunca houve nenhuma mulher qualificada ou nunca houve nenhuma mulher politicamente desejada? E agora, se houver, qual é o problema disso?
Deixem os órgãos políticos fazer aquilo que são supostos fazer: política. O SGNU acabará por surgir como produto das negociações entre diferentes interesses. De um certo ponto de vista, será o equilíbrio resultante do confronto dos vários interesses, que têm forças diferentes. Alguns desses interesses serão interesses que defendem a representação descritiva e simbólica das mulheres. E não há nada de errado disso.