Em
1930, Ortega y Gasset publicou o seu livro mais famoso: “A rebelião das
massas”. É impressionante a actualidade de algumas das suas intuições. O
objectivo de Gasset era fazer um diagnóstico do “nosso tempo”, da “vida
actual”.
Para
Gasset, o facto mais importante da vida europeia é o advento
das massas. A rebelião das massas consiste na obliteração das almas médias. O
homem-massa não é tonto; ao invés, tem ideias taxativas sobre tudo, perdeu o sentido
da audição, não tem referências, não respeita nada nem ninguém, não tem
interesse nenhum pela história - segundo Gasset, é a história que nos distingue
dos outros animais ao permitir-nos não ter que começar sempre do zero. O homem-massa só tem direitos e nenhuma obrigação, e está
muito satisfeito consigo próprio. É um menino mimado. Isto leva à barbárie no sentido literal do
termo: ausência de normas e de possível recurso. Gasset define ainda a
subespécie dos “bárbaros especialistas”, pessoas que, por dominarem uma pequena
parcela do saber, falam com petulância e autoridade sobre tudo o que
desconhecem.
Curiosamente,
Gasset achava que a unidade da Europa era inevitável. As nações haviam-se
tornado insuficientes e pequenas, era por isso necessário integrá-las numa
Europa Unida. Gasset não fazia ideia que tipo de Estado europeu nasceria, mas
falava de uma supernação que manteria a pluralidade. De qualquer maneira,
Gasset ficaria decerto horrorizado com a actual burocracia europeia, que dedica
o tempo a normalizar o tamanho das gaiolas dos grilos e outros assuntos que
tais. Talvez volte um dia à visão de Gasset sobre uma "Europa unida", mas não é isso que
me interessa agora (uma pessoa começa a escrever com uma ideia e quando dá
conta já está a caminho da China).
Gasset
achava que viver é “sentir-se fatalmente forçado a exercitar a liberdade, a
decidir o que vamos ser neste mundo”. É, pois, falso dizer que são as
circunstâncias – as possibilidades do mundo - que decidem. Pelo contrário: “as
circunstâncias são o dilema, sempre novo, perante o qual temos de decidir. Mas é
o nosso carácter que decide.”
Esta
ideia aplica-se também à vida coletiva. As escolhas feitas pela sociedade
dependem do seu carácter ou do tipo de homem dominante nela. No nosso tempo, domina o homem-massa: “é ele quem decide.”
Especialmente
nos países em que o triunfo das massas é mais evidente (nos países
mediterrânicos segundo o autor), a vida política é vivida ao sabor dos
acontecimentos diários. O poder está nas mãos dos representantes das massas. Estes
são tão poderosos que aniquilam qualquer oposição.
O
poder público, o governo, vive sem programa de vida, sem projecto. Não sabe
para onde vai, porque, em rigor, não vai a lado nenhum, não tem um caminho
definido, uma trajectória perceptível. Este poder público não evoca o futuro,
refugia-se no presente e assume que o seu modo anormal de governo é imposto
pelas circunstâncias. Isto é, pela urgência do presente e não por avaliações em
relação ao futuro. Daí que a acção do poder público se reduza a esquivar-se dos
conflitos e dos problemas de cada dia ou de cada hora. Não se trata de resolver
os problemas, trata-se de escapar aos problemas de cada momento. Para o efeito,
recorre-se a todos os métodos e expedientes necessários, mesmo que isso
implique acumular problemas e conflitos maiores para o dia de amanhã ou para a
hora seguinte. O poder público é sempre assim quando é exercido pelas massas:
“omnipotente e efémero”. Segundo Gasset, o “homem-massa não tem projectos, anda
constantemente à deriva.”
Gostei!...as democracias sobreviverão ao homem-massa?
ResponderEliminarGasset achava que as democracias liberais eram um tipo superior de vida pública, o melhor até agora imaginado pelos homens e temia pelo seu fim, pela chegada da barbárie, como veio de facto a acontecer na Europa poucos anos depois da publicação do livro. Quando o homem-massa domina, há sempre esse risco
EliminarGostei bastante do texto, mas a dicotomia entre homem-massa e as "almas médias" parece-me de utilidade analítica limitada: afinal o mais comum entre os seres humanos é achar que o seu grupo (ou as suas ideias) é o mais esclarecido/evoluído/sensato, e que os "outros" são um rebanho acéfalo que não pensa profundamente nos problemas (ou pior, que se recusa a abraçar as ideias "obviamente superiores" devido a interesses mais ou menos inconfessáveis). Eu acho que somos todos homens-massa, e que a tentação de estarmos satisfeitos connosco próprios simplesmente se torna mais fácilde satisfazer numa sociedade mediatizada em que se consegue, sem demasiado custo pessoal, encontrar gente que partilhe das nossas indignações sobre "esses brutos" que são os outros que pensam de forma diferente... Em resumo: eu não acho que a democracia liberal esteja em perigo por causa do homem-massa dominar, mas por causa do homem-primata gregário que todos somos. Pessimista, eu? Nãã...
ResponderEliminarSerá indelicado da minha parte fazer notar que sem o "homem-massa" a economia moderna não existiria?
ResponderEliminarPenso que é ao contrário: foi a economia moderna que gerou o homem-massa.
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