Num post recente, referi-me ao Império Austro-Húngaro, que
apresenta algumas semelhanças inquietantes com a União Europeia: múltiplas
nacionalidades e línguas, livre circulação de bens e capitais, uma moeda única,
um banco central.
Na sequência, lembrei-me de repescar um texto que publiquei há uns
anos aqui na destreza sobre “O mundo de ontem”, a autobiografia de Stefan
Zweig. Austríaco, judeu, humanista e pacifista, Zweig foi um dos escritores
mais populares da Europa nas primeiras décadas do século passado. Hoje, está
quase caído no esquecimento. Nasceu em 1881, no grande e poderoso império
Austro-húngaro, na monarquia dos Habsburgos. Cresceu em Viena, na altura uma
das maiores capitais culturais do mundo e que viria, anos mais tarde, a
transformar-se numa cidade de província sob o jugo dos nazis. Bem, aqui vai
então o tal texto:
“Viena, cidade milenar, fundada pelos romanos, aqui brilhou sobre
o mundo a plêiade eterna da música: Gluck, Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert,
Brahms, Mahler. Em quase nenhuma outra cidade da Europa era tão ardente a
paixão pela cultura, recorda-nos um Zweig traumatizado – traumas de que nunca
se libertaria, suicidando-se no Brasil em 1942. E, no entanto, a época que
antecedeu a Primeira Guerra Mundial foi o período áureo da segurança. Tudo na
democracia austríaca parecia construído para durar sempre, sendo o Estado o
garante dessa estabilidade. Na altura, ninguém acreditava em guerras, em
revoluções e subversões. Todo o radicalismo, toda a violência pareciam não ser
já possíveis numa época de razão.
No seu idealismo liberal, o século XIX estava sinceramente
convencido de se encontrar no caminho certo e infalível que levava ao melhor
dos mundos. Era com desdém que se olhava para as épocas passadas, com as suas
guerras e fomes, como para um tempo em que a humanidade ainda era menor e
insuficientemente esclarecida. A crença inabalável no progresso tinha para essa
época a força de uma verdadeira religião – e houve de facto, nesta altura,
progressos notáveis a todos os níveis.
A história é conhecida. O poderoso e, aparentemente, sólido
império Austro-Húngaro desfez-se após a Primeira Grande Guerra. A seguir, veio
a Segunda Grande Guerra, e um sem número de bestialidades e perversidades nunca
imaginadas nem nas noites mais negras pelos liberalismos e optimismos reinantes
da época.
Ninguém previu a catástrofe que se avizinhava. Ninguém viu os
sinais, que Zweig, retrospectivamente, reconhece estarem visíveis para alguém mais lúcido e atento, desde a
última década do século XIX, . Os primeiros
movimentos de massas com o surgimento dos partidos socialista e social-democrata. As sementes do ódio espalhadas por um grupelho de fanáticos
revolucionários agrupados no partido nacional alemão. Viena até então a cidade
cosmopolita por excelência e, segundo Zweig, a cidade mais amada pelos judeus –
que financiavam em grande parte a sua riquíssima vida cultural – vê surgir um
nacionalismo feroz e um anti-semitismo crescente. O austríaco Hitler viveu lá
nessa altura e levou consigo estas ideias para a Alemanha, com os resultados
que se conhecem.
Poucos foram os que, na altura, não se deixaram iludir com a
loucura optimista daquela geração cega pelo idealismo e para a qual o progresso
da humanidade deveria ter como consequência necessária uma evolução moral
igualmente rápida.
Mas Sigmund Freud, um “pessimista” pouco amado pelos seus
contemporâneos, nunca se iludiu. Para Freud, a nossa cultura, a nossa
civilização, é apenas uma fina camada em risco de poder ser perfurada, a
qualquer momento, pelas forças destrutivas do mundo subterrâneo. Convém nunca
esquecer isto. Porque, afinal de contas, tudo o que é sólido dissolve-se no ar.”
Um avisado aviso, caro Carlos Alexandre!! Especialmente para aqueles que, hoje, animados pela apoteose da história, se entendem desobrigados de observar tudo quanto parece brotar do direito natural!! Há tensões, iniludíveis, no ar! Prudência, exige-se!!
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