A história é
conhecida. Em 2013, Edward Snowden revelou ao mundo documentos classificados
(classified documents) da NSA (National Security Agency), descrevendo - entre
outras actividades classificadas - um programa top-secret conhecido como PRISM.
O PRISM foi
originariamente concebido para monitorizar e colher comunicações online de
estrangeiros suspeitos de envolvimento terrorista. Mas posteriores
investigações do Washington Post e do Guardian sugerem que o programa é muito
mais invasivo e intrusivo. Permite às intelligence agencies ter acesso aos
servidores de companhias bastante populares como a Google, Microsoft, Apple, Facebook,
Yahoo, Youtube, Skype, entre outras. As intelligence agencies podem vigiar os cidadãos americanos sem necessidade de um mandado, monitorizando e arquivando emails,
chats, transferências de ficheiros, etc.
Após estas
revelações bombásticas de Snowden – acusado de traição pelas autoridades
americanas e obrigado a pedir asilo político – foram realizados vários inquéritos sobre o assunto. Hoje, quase 90%
dos americanos tem consciência de que as suas acções online podem ser
interceptadas pelo governo. Mas as opiniões dos americanos dividem-se
sobre estas actividades de vigilância do Estado.
57% dos
americanos acha-as justificáveis por causa do combate ao terrorismo. Muitos dos
defensores utilizam o argumento do “quem não deve não teme”. Parece-me um
argumento perigoso. A questão não está em ter feito ou não algo de mal ou
errado. A questão da privacidade tem antes a ver com a necessidade de esconder
informação que os outros podem nalgum momento usar contra nós. Neste sentido,
quase toda a gente tem alguma coisa que gostaria de esconder.
Ao contrário do
que provavelmente se passa em Portugal, a maioria dos americanos tem também
consciência de que tudo o que fazem na internet deixa impressões
digitais. As "cyber-pegadas" não se apagam; é sempre possível recuperá-las,
incluindo os posts que, por exemplo, eliminamos no Facebook. As
mensagens ficam para sempre armazenadas nas profundezas do ciberespaço.
Alguns estudos
mostram que a percepção ou consciência desta vigilância tornou os americanos
mais prudentes acerca daquilo que postam na Internet. Por exemplo, num inquérito de 2014,
86% dos inquiridos responderam estar dispostos a discutir a fuga de informação
de Snowden sobre o PRISM em fóruns offline (jantares e almoços de família e
amigos), mas apenas metade disse estar disposta a postar sobre o assunto no Facebook ou no Twitter. A não disposição em expressar
opiniões online acerca deste assunto é maior entre aqueles que sentem que
os seus amigos nos social media não partilham a sua visão.
De forma optimista, muitos académicos acreditaram que a natureza descentralizada da
internet permitiria uma maior variedade de opiniões. Como as redes sociais
online permitem aos indivíduos estabelecer contactos com conhecidos mais
distantes geográfica e politicamente (apesar de serem "weak
ties"), o debate seria enriquecido, o espaço público alargado. Todavia, uma
carrada de estudos realizados, em especial nos últimos 10 anos, tem vindo a
alertar para um crescente esmagamento das opiniões minoritárias nas redes
sociais.
O Nuno Amaral
Jerónimo enviou-me há dias um artigo intitulado
“Under Surveillance: Examining Facebook’s Spiral of
Silence Effects in the Wake of NSA Internet Monitoring”, de uma senhora
chamada Elizabeth Stoycheff. A autora estudou os efeitos da espiral do silêncio
no Facebook, após as revelações de Edward Snowden.
Já aqui falei duas ou três vezes na espiral do
silêncio, uma teoria apresentada pela cientista política alemã Noelle-Neumann
em 1974. Basicamente, diz-nos que as pessoas dispõem de um “órgão” inato que
ela chama “quasi-satistical sense”, que lhes permitiria avaliar, em cada
momento, as tendências da opinião pública. Essas percepções formam-se,
sobretudo, com base nas notícias dos media, mas também nas relações interpessoais
e na observação directa.
Essa monitorização sobre as tendências das opiniões
nasce do medo do isolamento, que faz parte da natureza social do Homem.
Assim, quando os indivíduos percepcionam que a sua opinião está do lado da
maioria, estão dispostos a exprimi-la publicamente. Caso contrário, preferem
remeter-se ao silêncio. Esta teoria teve enorme sucesso, mas nunca foi muito
bem aceite por muitos académicos e intelectuais, porque assenta no pressuposto
de que a maioria das pessoas é conformista. Ora, numa sociedade que preza tanto
a educação, a razão, o espírito crítico, etc., “conformista” e “conformismo” têm
um sentido pejorativo; são rótulos que ninguém quer ver colados a si – quando muito,
estamos dispostos a colá-los nos outros.
Voltemos ao
estudo que o Nuno me enviou. Conclusões? Os inquiridos que são contra a vigilância do
Estado parecem menos sensíveis às opiniões dos outros. Ironicamente (ou talvez
não), os que defendem a existência de programas como o PRISM mostram menos
disposição para se colocar do lado de opiniões (aparentemente) minoritárias –
não postam, não comentam, não linkam, não partilham opiniões em que se revêem,
mas que pressentem estar contra a opinião da maioria dos seus amigos do Facebook.
Elizabeth Stoycheff acha que estamos
perante mais uma evidência do perigo do silenciamento de opiniões minoritárias
em larga escala. A autora aventa ainda que talvez o maior medo dos indivíduos
não seja o isolamento ou a ostracização social como defendia a Noelle-Neumann,
mas sim o medo das possíveis retaliações do Estado.
No início do romance “Mil novecentos e oitenta e quatro” de George Orwell, ficamos
logo a saber que “O Grande irmão está a ver-te”. Ao contrário do que imaginou o
genial escritor inglês, o “Big brother” dos tempos modernos não avisou que
nos estava a ver. Foi o Edward Snowden (e outros) quem nos avisou. Estamos
avisados.
O Snowden não revelou nada de novo. The New York Times já tinha revelado a extensa invasão de privacidade que tinha ocorrido como consequência do Patriot's Act. A história do Snowden colou mais porque a revelação foi feita durante a Administração Obama; a revelação do NYT foi feita sob a Administração Bush. A grande contradição que eu encontro é que os Republicanos, que são os primeiros a desconfiar do papel do estado e exigem ter armas para ter a opção de se insurgir contra o estado, não disseram nada perante o forte ataque a que as liberdades dos americanos foram sujeitas com a passagem do Patriot's Act. De facto, não só não se insurgiram, como atacavam quem questionasse o governo e chamavam a pessoa de anti-patriota.
ResponderEliminarA Rita vai chegar ao Congresso.
EliminarNão foi (só) o facto de ser durante o mandato do Obama que tornou as revelações do Snowden importantes.
EliminarA nível "legal" talvez elas não pareçam significativas, mas a nível técnico foram bastante relevantes e provocaram uma resposta séria da comunidade infosec.
Os tribunais secretos, os mandatos secretos, podem continuar a existir dentro da sua "legalidade" duvidosa, mas tecnicamente é hoje muito mais difícil interceptar comunicações, extrair informações de telemóveis, etc e muito disso deve-se ao que foi revelado.
Numa altura em que a sociedade assiste com tranquilidade à publicação e comentário, nos jornais e televisões, de conversas telefónicas privadas, algumas, em directo, e até de pessoas com o cargo de maior dignidade institucional dos seus países, fica um bocado ridículo mostrar preocupação com o registo daquilo que as pessoas voluntariamente partilham nas redes sociais.
ResponderEliminarExperimente ver se percebe o seguinte:
EliminarMiguel Midões defendeu na UTAD que observou a espiral de Noelle-Neumann no caso Esmeralda (2003-2012), principalmente em 2007 quando o Tribunal Constitucional recusou o recurso contra o pai da menina.
Ajuda
O Estado português viria a ser condenado no Tribunal Europeu, em 2012, por ter demorado mais de 4 anos a cumprir uma sentença judicial transitada em julgado e que, nos media (e não só...) tinha passado por ser uma imoralidade.
Se a "querida" não queria ser inadvertidamente escutada enquanto falava com o "senhor" que todo mundo sabia estava sendo investigado, em vez de falar para o celular do acessor (na esperança que esse não estivesse sob escuta), bastava ter usado o Whatsapp.
EliminarSão coisas diferentes a de tomar cautelas e de ser-se atropelado sem ter cruzado a via.
EliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarBem lembrado, Isidro. Se a Noelle-Neumann assistisse ao caso Sócrates não lhe chamava espiral, chamava furacão. Talvez também só o Tribunal Europeu venha a pôr fim a essa chacina e levantar pelas orelhas o que restar de dignidade cívica na sociedade portuguesa.
ResponderEliminarHaja alguém a fazer o teste de aplicar a referida teoria ao caso que cita, com base no que está publicado. Pois... Quando há dados não é necessário ir pelo lado das experiências de pensamento (Thought Experiments). É por isso que, nesta data, não especulo.
EliminarA referida aplicação de Elizabeth Stoycheff ajuda também a perceber um documento produzido na orla de um serviço secreto estrangeiro nos anos 70 e disseminado, sob anonimismo, em 1979 passando então a ser distribuido com uma pseudo-autoria.
ResponderEliminarQuanto à conclusão, que aponta para um medo novo em relação ao Estado tentarei percebê-la depois de informar-me sobre os cuidados no tratamento dos dados do estudo.
Não menos, todo o artigo é muito bom, e oportuno.
Prezado Isidro Dias,
EliminarObrigado pelos seus comentários. Deixo-lhe aqui o link do Washington Post através do qual pode aceder ao artigo da Elizabeth Stoycheff:
https://www.washingtonpost.com/news/the-switch/wp/2016/03/28/mass-surveillance-silences-minority-opinions-according-to-study/