terça-feira, 30 de agosto de 2016

A República vai de “burquíni”

 Conselho de Estado francês desempenha, no ordenamento jurídico daquele país, funções consultivas em matéria legiferante e é dotado de competências decisórias em sede de Direito Administrativo, próximas das entre nós acometidas ao Supremo Tribunal Administrativo. Para além de garantir a legalidade, em último recurso, das decisões da Administração Pública, o prestígio dos magistrados que o integram torna o Conseil d’État um baluarte do Estado de Direito.
A recente decisão de 26/8, próxima das nossas providências cautelares, em que se visava a suspensão da eficácia do acto administrativo do maire de Villeneuve-Loubet, o qual havia aprovado uma ordonnance de 22/8/2016 na qual se lê que: “(…) o acesso ao banho fica interdito, de 15/6 a 15/9 inclusive, a quem não disponha de roupa correcta, respeitadora dos bons costumes e do princípio da laicidade (…) O uso de roupa, durante o banho, que tenha conotação contrária a estes princípios é estritamente proibido (…)”, é assinalável a vários títulos. Trata-se, contudo, de uma decisão provisória, reconhecido que foi que a manutenção em vigor da ordonnance atentava contra direitos fundamentais, sendo necessário interpor acção principal que declarará ou não a sua ilegalidade, pelo que a questão não se acha encerrada.
Antes de mais, ao invés do que infelizmente sucede amiúde entre nós, aquele órgão demonstra que não é preciso escrever muito para ir ao busílis da questão. O aresto reconheceu que as restrições em causa devem ser “adaptadas, necessárias e proporcionadas às exigências únicas de ordem pública”. Na argumentação do Conselho, aquele regulamento administrativo “comporta uma violação grave e manifestamente ilegal às liberdades fundamentais que constituem a liberdade de ir e vir, a liberdade de consciência e a liberdade pessoal”. O órgão alude expressamente à onda de atentados terroristas em solo francês, com particular destaque para Nice, mas é muito claro ao defender que os instrumentos do rule of law não podem ser similares aos dos terroristas. Não se vislumbra, na sua opinião, qualquer razão de segurança pública ou de perturbação da ordem, como vinha sustentado pelo Presidente de Câmara. Apenas esse motivo poderia, na ponderação dos interesses em presença, conduzir a uma limitação de direitos fundamentais como o de poder vestir-se e apresentar-se em público como se deseja, ponto é que tal não afecte a liberdade e autodeterminação sexuais de terceiros.
Importante é a referência à liberdade de culto e de religião na decisão do Conseil d’État, uma vez que o modo como alguém se veste é uma imanação desse direito de primeira geração. Sabemos que a questão não é pacífica em vários países, mas sobretudo em França, onde a “burkha” foi proibida em espaços públicos e lugares da Administração, a coberto de motivos de segurança. Se esta restrição pode encontrar guarida numa certa interpretação do princípio da proporcionalidade, o uso do chamado “burquíni” não, bastando para o efeito, como o têm posto a nu as redes sociais, compará-lo com alguns fatos de natação de conhecidas marcas comerciais.
A França tem sido pouco prudente nestes domínios. As proibições deste tipo devem estar solidamente ancoradas para não parecerem um ataque gratuito a uma dada confissão religiosa. Por outro lado, o Estado republicano e laico convive e respeita as várias manifestações de um credo, regulando-as em medida estritamente necessária, só podendo impedir certas manifestações quando outros direitos fundamentais estejam em risco de lesão.
Desde o conhecido “caso dos crucifixos” na Alemanha, o qual chegou ao Tribunal Constitucional daquele país, discutindo-se até que ponto um Estado laico deve ou não aceitar a existência de sinais religiosos em lugares públicos, até ao referendo suíço que proibiu a construção de minaretes, a Europa vai dando sinais de não ter integrado a destrinça entre um Estado laico e um que respeita as manifestações de religiosidade que não bolem com princípios fundamentais. Tal constitui um jogo muito perigoso no quadro dos actuais extremismos, não apenas de origem muçulmana, mas também de nacionalismos explosivos de partidos de direita.
O republicanismo, seja ele francês ou de qualquer outra latitude, na sua essência, exige e respeita a diferença e é pragmático. Lançar gasolina para uma fogueira que já não arde em lume brando, mas em chamas vistosas, não é, por certo, o caminho. O busto da República aguenta bem um “burquíni” e não é por isso que os ideais que corporiza são postos em causa.



4 comentários:

  1. Caro André Lamas Leite, este seu post dá azo a uma discussão que está totalmente arredada do espaço público sendo até tabú mas é uma das questões fundamentais nesta história toda. É muito certo que é proíbida a discriminação religiosa. A pergunta que se impõe é se essa limitação permite um eficaz combate às ameaças actualmente existentes. O que nos leva, evidentemente, a questionar se os valores Ocidentais destes tempos são adequados a garantir a vida próspera e em paz à grande maioria dos Europeus. Ou se são fruto de ideias, ideais, valores e outras abstracções que, quando aplicados, acabam a causar mais problemas do que aqueles que pretendem evitar. É que esta baliza impede o uso de certas ferramentas importantissimas no combate à criminalidade e ao terrorismo, nomeadamente do profiling, por exemplo. A questão em França advém do muito justificado alarme social em que a população Francesa vive nos últimos tempos. Mas há também questões práticas e de relevante utilidade envolvidas. Concordo plenamente que, se as câmaras não podem legislar neste sentido haja um poder superior que lho impeça. O que digo é que se calhar há que alterar as regras que regem esse poder superior por forma a permitir uma série de coisas, muitas delas de grande utilidade.

    A não discriminação em função das crenças religiosas advém do Holocausto. Foi criada num contexto totalmente diferente do actual e para proteger valores totalmente diversos. Manterá a sua utilidade nas condições actuais?

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    1. "A não discriminação em função das crenças religiosas advém do Holocausto."

      Penso (pelo menos no que diz respeito a discriminação legal)que vem das revoluções liberais do século XIX.

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  2. É público que os principais candidatos, da esquerda à extrema direita, já assumidos como tal, à presidência da República Francesa, em Abril do próximo ano, declararam apoiar a "revolta popular" contra o burquini.

    Independentemente do julgamento que possa fazer-se sobre a racionalidade da rejeição popular, pode ou não pode a suspensão decidida pelo Conselho de Estado ser revertida por uma votação maioritária na Assembleia Nacional?

    Parece que sim, se a suspensão decidida pelo Conselho de EStado se configura, segundo afirma o André Lamas, como a aceitação de uma providência cautelar, sujeita a decisão definitiva, suponho eu, em sede mais competente.

    Se for o caso, e ainda que a rejeição da polémica peça nos possa parecer obtusa, é caso para dizer que "para lá do Marão mandam os que lá estão".

    Ou não?

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  3. Miguel, sinceramente não sei se antes da II Guerra haveria um número significante de países com leis anti-discriminação mas até essa altura a discriminação existia e era bem real.

    O Holocausto conseguiu apanhar tantos judeus Alemães (frizo Alemães porque depois da invasão da Polónia a questão tornou-se diferente tanto pela quantidade como pelas especificidades dos judeus Polacos e na Russia, por motivos políticos fruto largamente da paranóia de Hitler as coisas eram diferentes de em todos os restantes sítios onde as tropas Alemãs chegavam) porque nenhum país os aceitou. A matança indiscriminada de judeus não foi, de todo em todo, a primeira coisa tentada pelos nazis e é muito posterior às primeiras leis anti-judaicas. Só começou a tomar forma na Conferencia de Wansee, em Janeiro de 1942. O internamento de judeus em campos de concentração só começou em 1938 e mesmo nessa altura eram presos, enviados para os campos e todos aqueles que conseguiam ser aceites por qualquer outro país eram postos na fronteira muito rapidamente. Os Alemães ajudavam tanto quanto podiam a que os judeus fossem aceites em qualquer lado, wherever. Nessa altura apareceu a ideia - algo peregrina, convenhamos... - de envia-los para Madagascar. Em 1940 o governo Alemão, dado o enorme número de judeus ortodoxos com que ficaram entre mãos após a invasão da Polónia, fez a proposta formalmente aos Franceses que não acharam piada nenhuma à ideia. Os Britânicos, por seu lado, não aceitaram levantar o bloqueio naval e garantir passagem segura dos navios carregados de judeus para Madagáscar. Ainda os Britânicos, por seu lado, também não os queriam na Palestina - na altura Mandato Britânico para a Palestina - e faziam tudo o que podiam para não os deixar desembarcar. Ou seja, tanto França como Inglaterra discriminaram clara e abertamente os judeus nessa altura.

    A política primeira dos nazis foi separa-los do resto da sociedade e tornar-lhes a vida tão dificil por forma a que eles se fossem embora pelo seu próprio pé. O grande problema aqui foi que ninguém os queria em lado nenhum. Estados Unidos, Inglaterra, França, Portugal todas as portas fechadas. Todos estes países discriminavam os judeus com base na sua religião. Muitos conseguiram realmente fugir neste período mas muitos ficaram sem quaisquer opções. A grande excepção na Europa foi Espanha que teve como política de estado acolher todos os que conseguiam chegar às suas fronteiras. A opção pela exterminação dos judeus só acontece muito mais tarde, após a invasão da Polónia e da tentativa falhada dos ghettos. Toda esta questão judaica deixava os restantes países tão despreocupados que as leis de Nuremberga (que entre outras coisas tiravam a cidadania Alemã aos judeus e os transformava em súbditos do Estado) foram criadas em Setembro de 1935 sem qualquer tugir nem mugir de qualquer das potências da altura. Mais, no Verão de 1936 houve os Jogos Olímpicos em Berlim, já com as leis de Nuremberga em plena aplicação, e não houve quaisquer arremedos de boicote de país nenhum às Olímpiadas.

    A discriminação religiosa era comum na Europa até ao pós II Guerra. Aí, pelo que aconteceu, passou a haver a não discriminação mas até essa altura não havia qualquer problema com o assunto.

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