quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Coisas esdrúxulas 92

 É cheia de peripécias a vida do pícaro.
Acorda a pensar no estômago e deita-se a pensar no dia seguinte, quando terá que pensar no estômago. Pilífero, que não pode pagar ao barbeiro, a quem rouba o sabão e as navalhas rombas. Pilípede, que os sapatos rotos quase são só sola esburacada segura com fé e cordéis. Toca um harmónio desafinado nas esquinas para desviar a atenção dos passantes do cúmplice de ocasião que, à primeira delas, fugirá a sete pés, sete, com o produto do trabalho e da perícia que custa pôr a mão em bolso alheio. Torna-se acólito de mendicantes suspeitos mais rasgados do que ele. Espera que seja o próximo mister honesto, ou na medida do que lhe venha a ser possível, apenas para descobrir que serve um somítico, ladrão, trapaceiro, velhaco, pior do que ele alguma vez será no final de uma carreira de golpes modestos. Conhece mulheres de peitos promissores, hálito podre e costumes equívocos, ou por demais transparentes, como as camisas esfregadas na pedra mais de uma centena de vezes. Corteja herdeiras desprezadas, de cabelos ralos, narizes grandes, e lenço sempre pronto a enxugar as lágrimas áridas de quem sonha há décadas com cavaleiros garbosos e piratas arrojados. O pícaro é um eterno optimista.

2 comentários:

Não são permitidos comentários anónimos.