sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Sensibilidade e bom senso

Em final de silly season, o recente “caso” dos filhos do embaixador do Iraque em Portugal veio trazer para a praça pública o problema técnico-jurídico da chamada “aplicação da lei penal quanto às pessoas”. Por imperativos constitucionais, o princípio da igualdade é a regra e as suas limitações são apenas duas: as imunidades políticas e as diplomáticas e consulares. Quanto a estas últimas, já muito se tem falado da Convenção de Viena de 1961 sobre o tema. É essencial compreender-se que, para o sucesso das relações entre os Estados e as organizações internacionais, os respectivos agentes necessitam de certos privilégios de jurisdição, à cabeça dos quais em matéria penal. Tal não significa – nem pode significar – impunidade, mas também é um dado que os mecanismos para o seu efectivo controlo são relativamente pífios. Aliás, o Direito Internacional Público não tem uma polícia ou um Tribunal únicos, razão pela qual é tido como o mais débil dos ramos de Direito do prisma da sua coercibilidade.
Acresce que estamos em face de relações entre entidades soberanas, sempre sujeitas a melindres e com repercussões graves, desde logo, do prisma económico-social. Donde, estes temas devem ser tratados com resguardo. É evidente que os mass media têm feito o seu trabalho, amiúde exagerado, porventura por falta de assuntos. É ainda claro que o Ministério Público tem empreendido o que lhe compete, e o pedido de levantamento da imunidade diplomática surge como um procedimento normal, a que talvez não tenha sido indiferente a pressão da opinião pública. O Ministério dos Negócios Estrangeiros tem monitorizado a situação de modo correcto. Então, porquê o sentimento de impunidade que campeia por aí? Exactamente porque os Estados signatários da Convenção bem sabiam que riscos como este existem, mas que as vantagens dela decorrentes são superiores.
Se o Estado iraquiano não proceder ao levantamento da imunidade, Portugal apenas pode expulsar os indivíduos em causa, passando a ser, cada um deles, persona non grata. Tal importa, ainda, que o nosso país possa remeter, a pedido das autoridades judiciárias nacionais, os elementos probatórios até ao momento existentes às autoridades do Iraque, que deverão julgar os alegados agentes do crime (o velho princípio punire aut dedere). É evidente que não temos quaisquer garantias efectivas do modo como esse julgamento decorreria fora de Portugal, por não existir jurisdição sobre Estado estrangeiro. A impunidade – a provar-se a existência de crime e que aqueles foram os seus autores – teria reflexos diplomáticos nas relações entre os dois países, com eventuais sanções económicas que, de momento, tirando zonas de franja, exigiria uma posição conjunta dos Estados-Membros da UE. Ora, existem numerosos e contraditórios interesses no clube europeu quanto ao Iraque, o que tornaria impossível – arrisco-me a vaticinar – a adopção de medidas de retaliação de natureza colectiva.
No ideal dos mundos, o Iraque levantará a imunidade e os suspeitos poderão ser constituídos arguidos, com aplicação de medidas de coacção processual adequadas, e estarão em condições de se defenderem. Não podemos esquecer que qualquer suspeito se presume inocente até ao trânsito em julgado da decisão final, bem como que os jovens iraquianos têm também interesse legítimo em apresentar a sua versão dos factos, o que se estende ao embaixador que, na cena internacional, já não poderá apagar esta mácula da sua carreira. Como sempre, não deve haver julgamentos em praça pública, mesmo que os alegados delinquentes tenham confessado uma parte dos factos em entrevista. Evitemos a histeria colectiva, sem que isto signifique qualquer desculpabilização de algum dos contendores, mas a afirmação dos esteios fundamentais do Estado de Direito. Numa organização política deste tipo, são os instrumentos jurídicos convencionais e legais as nossas “armas” e não o “diz-que-disse”.
Todos esperamos que o Rúben recupere o mais rapidamente possível e que possa contribuir para o apuramento da verdade. Da entrevista dos filhos do embaixador, de muito duvidosa conveniência, resulta, a dado passo, que episódios como este são o dia-a-dia em Portugal. Não é verdade, felizmente.
A justiça tem o seu tempo. Não é o da comunicação social. Nunca poderá ser, sob pena de, em minutos, se operar o julgamento, a condenação e o cumprimento da sanção.
Felizmente Agosto está a terminar e, sem menorizar a gravidade deste caso, suspeito bem que outros existam que merecem a nossa atenção. De repente deixou de se discutir uma verdadeira estratégia para a floresta, a recapitalização da Caixa, a necessidade de um orçamento rectificativo, os sinais de dissenso na coligação de incidência parlamentar informal que sustenta o Governo, os dados macroeconómicos, a reforma da Segurança Social.
Pois é, Setembro está à porta e é tempo de voltarmos à realidade. Mesmo que ela seja dura.

1 comentário:

  1. Excelente post, caro André Lamas Leite. Muito calmo, muito ponderado e explicando com calma o que são as imunidades diplomáticas, para que servem, porque é que existem e quais os efeitos de serem abolidas.

    BRAVÔ!

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