domingo, 23 de outubro de 2016

Floricultura 30


As flores carnívoras não são flor que se cheire. Tanto moralmente, pois são manhosas. Como materialmente, ou seja, cheiram mesmo mal.
Um dia destes tive uma conversa com o meu dentista, por falar em moral e material. Entrei no consultório, apertei-lhe a mão dizendo bom-dia, recebi em troca um bom dia acompanhado de um faça o favor de se sentar. Nada que destoe do habitual, pelo menos é esta a minha experiência. No que respeita a médicos em geral. O que muda quando vamos ao médico são as cadeiras, mas que haja um convite para que nos sentemos é uma coisa universal. Desde que haja cadeiras. Coisa que é costume acontecer. Nos consultórios dos dentistas as cadeiras que há são bastante mais sofisticadas do que as cadeiras que há noutros consultórios, admita-se. São mais parecidas com as cadeiras antigas dos barbeiros, daquelas que subiam e desciam com um pedal. Este pedal não é o pedal das bicicletas, entenda-se. Parece antes um pedal como os das máquinas de costura. Ou o dos macacos de levantar carros para mudar pneus furados. Este é um macaco figurado, claro. Seria difícil convencer um macaco literal a erguer um carro, muito mais à pedalada. E seria mais difícil ainda escolher o macaco mais adequado à tarefa. Somos demasiado liberais no uso que damos à palavra macaco. É o que eu acho. É o que também me diz a minha experiência, tal como no caso do que acontece quando entramos no consultório de um dentista. Sentei-me na cadeira correspondendo ao convite que me foi feito. Pareceu-me ser do meu interesse fazê-lo, isto é, não o fiz apenas por delicadeza. Há vezes em que podemos fazer as coisas apenas por delicadeza, mas noutras ocasiões as delicadezas podem fazer-nos perder a vida. Bem sei que não há muitos relatos de mortes nas cadeiras dos dentistas, mas o risco está lá. Nas brocas e agulhas e não sei como se chamam as restantes ferramentas de torcionário que o dentista tem sempre à mão e sem relutância em usá-las. Também não é de molde - de molde, reparem, não pode ter sido por acaso -  a tranquilizar-nos que a cadeira esteja reclinada e a cara do dentista mesmo em frente da nossa. E em cima. Muitas vezes não sabemos para onde olhar, se para o tecto, se para os olhos do dentista. Deve haver quem se tenha apaixonado por dentistas, ao olhá-los nos olhos tanto tempo e com tal proximidade. Mas o olhar do dentista não se troca com o nosso, na verdade, são os nossos dentes que o dentista prescruta com tanta intensidade, não é a nossa alma, e são cáries aquilo que o dentista procura e não se a dita alma é gémea. Aqui está o moral e o material de que falei acima a propósito de flores carnívoras e dentistas. Só falta relatar a conversa que tive com o meu. Ele perguntou-me o que é que eu achava da subida abrupta do IMI. E eu, de boca aberta, respondi-lhe, ããããããã.

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