sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Ludismo de bancada

A concorrência entre o serviço de táxi dito tradicional, e as plataformas do tipo uber, é mais complexa do que parece - e merece uma discussão, a meu ver sobretudo intelectual (e já explico porquê), mas não menos necessária, sobre o que significa a transformação da economia, tal como a conhecemos, numa economia baseada no faz tu próprio. Esta questão, obviamente, não se prende apenas com os táxis - hoje, anónimos produzem e colocam vídeos no youtube, concorrendo pelas receitas de publicidade com grandes produtores de conteúdos televisivos; bloggers competem com órgãos de comunicação social; artistas prescindem das agências e colocam eles mesmos as músicas no myspace ou no facebook; proprietários arrendam as suas casas através do airbnb, concorrendo na produção com o setor formal de alojamento e na distribuição com as agências de arrendamento. A série de exemplos é infindável. Todos eles são possíveis graças à Internet, que permitiu a criação das chamadas plataformas de dois lados (tradução livre de two-sided platforms), onde produtores e compradores se podem encontrar numa plataforma comum, sem intermediários. 

A discussão de que falei há pouco é interessante. É importante perceber o impacto de trabalhadores tornarem-se empresários, assumindo todos os riscos que essa acumulação envolve. Também é importante perceber os efeitos que terá sobre a defesa dos direitos laborais. A discussão é importante, mas é para acautelar os efeitos, nunca para parar a sua causa. A evolução tecnológica é um bem, e eu não tenho espírito de ludita (Há sempre luditas, às vezes em sítios onde menos esperamos. Pode ser difícil identificá-los, quando não trazem marretas para destruir as máquinas. Mas, por exemplo, quem quer impor limites à imigração, está a querer interromper o equivalente a uma evolução tecnológica. Evidentemente, esta é outra história). 

Uma das razões pelas quais é importante pensar nas implicações desta nova economia é porque, se o setor tradicional não pode ser mantido só porque sim, também não deve ser destruído só porque não se gosta dele. É possível que este setor tenha lugar. Que seja mais competitivo e eficiente do que o serviço prestado através das novas plataformas, por exemplo para segmentos de mercado específicos. Para perceber se é, ou não, competitivo, é importante deixá-lo competir. E a verdade é que este setor tradicional tem imensa regulação associada, que constitui um entrave à sua capacidade de competir. 

Os táxis, em particular, são alvo de uma regulação intrusiva. São poucos os setores onde o preço final praticado ao cliente é fixado pelo governo. Se pensarem bem, só acontece nos setores onde não há qualquer esperança de haver concorrência efetiva num horizonte temporal razoável. Trocado por miúdos: os táxis são mais regulados do que a eletricidade, as telecomunicações, a alimentação, a gasolina, os serviços médicos privados. Estão ao nível dos medicamentos e da água. 

Essa regulação dos preços finais, a que se junta muita outra não relacionada com o preço, retira-lhes flexibilidade que pode ser fundamental para responder à concorrência do uber. Em particular, o uber permite que o preço responda livremente à procura e a oferta. Havendo poucos condutores interessados em conduzir na véspera de Natal, quem quer ir comprar uma árvore à última hora tem de sugerir um preço que seja suficientemente alto para retirar o condutor à sua família. Havendo muitos condutores em Fevereiro, quando há pouco turismo na cidade, é importante que o preço do serviço possa baixar para que quem quer ou precisa de trabalhar encontre trabalho. Sem este mecanismo de ajuste do preço, o serviço tradicional de táxi está votado a constante excesso ou escassez de condutores. Isto reduz o lucro que as empresas de táxi podem retirar (porque podiam faturar mais quando há procura) e reduz a qualidade do serviço (quando há falta de condutores na estrada). É evidente que a luta por poder aumentar o preço em tempos de maior procura é perfeitamente legítima. É um segundo ótimo - o primeiro era permitir a total flexibilidade de fixação de preços -, mas é um movimento na direção certa. 

15 comentários:

  1. Se o número de alvarás de taxistas não fosse fixo, o sector seria muito mais competitivo e prestaria melhor serviço. Será que os taxistas estão interessados numa solução deste tipo?

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    1. É um dos elementos que referi como "a que se junta muita outra (regulação) não relacionada com o preço". Haverá certamente algumas que eles preferem manter e outras que preferem abolir. Eu preferia abolir todas.

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  2. Eu tinha a ideia de que a razão para o número de alvarás ser fixo se prendia exactamente com a fixação de preços. Era a contrapartida. O problema não estará tanto no número de alvarás ser fixo, mas nestes serem transaccionáveis.

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    1. Carlos, vejo a restrição à quantidade como medida complementar à restrição ao preço. São tudo restrições que me parecem anacrónicas e que no futuro me parece que impedirão as empresas de táxi tradicional de competir efetivamente.

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  3. Não acho que a Uber e afins seja um fenómeno exatamente similar a youtubes, trabalhadores tornarem-se empresários e afins - em parte, é exatamente o oposto: a substituição do taxista (tipicamente independente) por uma espécie de semi-empregados de uma empresa gigantesca.

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    1. É verdade que há taxistas tradicionais que são donos do seu próprio carro e têm a sua licença. Mas também há muitos que são empregados por contra de outrém. Não tenho ideia que o primeiro grupo seja superior ao segundo, em número. Quanto aos taxistas serem "empregados" da uber: a uber garante-lhes dias de férias? Paga-lhes a segurança social? Garante-lhes um ordenado mínimo? Então não são empregados da empresa.

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  4. Seja como for, temos progredido. Eu ainda sou do tempo - já depois do 25/IV - em que o preço de um café era tabelado em conselho de ministros. Não estou a gozar.

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  5. Ao contrário do que diz o Luis, da Internet não resulta a criação plataformas de comércio sem intermediários. Resulta antes a situação em muito poucas actividades e trocas comerciais, no mundo inteiro, não são comissionadas por empresas de São Francisco.

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    1. Lamento, mas não percebi o comentário.

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    2. Não percebe que dentro de muito pouco tempo não há nada que você compre que não pague uma comissão a uma empresa de tecnologia digital americana? Nem que algum tempo a seguir não haverá nada que você receba? O que é a uberificação da economia senão isso?

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    3. Solução: invente uma plataforma melhor.

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    4. Percebeu e concorda que é assim. Óptimo.

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  6. Duas pequenas notas:
    - No monópolio vivido pelos taxistas antes da Uber e afins, lembram-se das negociatas de alvarás, exatamente pelo nº fixo dos mesmos?

    - Lembram-se dos preços abusivos praticados no sector antes da tabela de preços fixos?

    É que parecem dois pontos pequenos, mas principalmente o 2º justifica (e muito!!) a regulamentação apertada que eles têm.

    Aliás pegando no examplo que deu das telecomunicações, era o mesmo que a mensalidade de 26€ da SportTTV passar para 50€ no mês em que exista um Benfica x Porto ou Benfica x Sporting...

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    1. Marcos, terá o mesmo com o uber: quando há excesso de procura, haverá subidas acentuadas de preço. Não se lembra da polémica recente nos EUA?

      Quanto às comunicações, os preços de retalho (finais, ao cliente) dos pacotes de televisão paga não são regulados. Julgo que se refira à impossibilidade de subir preços durante o período de contrato, mas isso não é regulação específica de telecomunicações (e não é bem, bem assim: o que a lei diz é que se houver subida de preços não razoável, o cliente pode cancelar o contrato, mesmo que não tenha acabado o período de fidelização).

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