terça-feira, 17 de agosto de 2021

A gratidão

Hoje aconteceu uma coisa que me incomodou bastante. Face à tragédia que está a decorrer no Afeganistão, vi várias mulheres portuguesas nas redes sociais a mostrarem gratidão por terem nascido em Portugal. Para mim, gratidão existe quando alguém escolhe fazer algo por nós, logo não concebo estar grata por não me violarem, baterem, mutilarem, etc., porque isso seria admitir que a pessoa que podia cometer esses actos fez uma escolha e eu não acho que isto seja uma questão de escolha. É uma questão de direito: ninguém tem o direito de agredir outra pessoa, logo não há escolha possível. O que há é crime.

Incomoda-me também a mensagem que estamos a dar às mulheres portuguesas que são vítimas de crimes. Que pensarão estas criaturas? Que devem estar gratas porque se estivessem em sítios como o Afeganistão era pior? E as futuras vítimas mortais de violência doméstica em Portugal também devem sentir gratidão?

Na semana passada, o New York Times publicou uma peça de investigação sobre uma jovem de 23 anos que morreu em Inglaterra em Abril de 2020. O caso foi denunciado ao jornal depois da morte da jovem ter tido pouca tracção na imprensa e com as autoridades britânicas. É um caso curioso porque, ao fim de um ano a tentar pedir ajuda à polícia inglesa para a proteger do namorado, ela morreu ao telefone: o coração parou enquanto esperava que a chamada fosse transferida para o atendimento não-urgente. Tinha telefonado com medo do namorado, que tinha saído da prisão e a tinha contactado, apesar de ele estar proibido. Ela foi encontrada morta, com o braço em redor do filho de sete meses que chorava ao colo dela.

O nome dela era Daniela Espírito Santo e nasceu em Portugal, a mãe tinha emigrado para Inglaterra em 1999. O nome do namorado é Julio Jesus, mas o NYT não disse a nacionalidade. Se calhar, veio do Afeganistão.

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