sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Bioterrorismo

Se têm acompanhado as notícias, um dos riscos mais altos que neste momento se considera na Europa é o potencial de serem usadas armas químicas e biológicas em ataques terroristas. Por estranho que pareça, na Quinta-feira à noite, antes dos ataques de Paris, andei à procura de um dos meus livros de receitas. Não é bem um livro a sério, são umas folhas de papel branco que foram cortadas, dobradas, e agrafadas para fazer um livro pequenino. Parece ser uma coisa muito prosaica, mas nesse livrinho estão receitas de armas químicas e biológicas, coisas como antraz e ricina.

Não encontrei o meu livro. A última vez que o vi foi na minha casa de Memphis, até sei exactamente a estante e a prateleira onde estava. Agora não o encontro, talvez esteja em alguma caixa que eu ainda não desempacotei da mudança. Ou talvez esteja enfiado dentro de outro livro.

Depois dos ataques terroristas de 2001 nos EUA, houve um aumento de dinheiro e atenção canalizados para combater o terrorismo. Nas conferências profissionais em que eu participava, na área de economia agrária e aplicada, começaram a haver sessões sobre terrorismo, uma clara consequência de o governo ter começado a financiar projectos de investigação.

Um dos maiores medos era um ataque terrorista que afectasse a cadeia de distribuição alimentar. Dado o nível de eficiência da cadeia de distribuição americana, pensava-se que uma arma biológica ou química introduzida nessa cadeia teria efeitos devastadores não só na saúde e na vida das pessoas, mas também na confiança dos consumidores, e causaria elevados prejuízos económicos. As armas químicas e biológicas que se conheciam não eram muito eficazes, mas presumia-se que todos os dias os terroristas trabalhavam para descobrir maneiras de as tornar eficazes.

Em 2004, alguns meses depois de eu começar a trabalhar na Universidade do Arkansas, realizou-se uma sessão de treino anti-terrorista na universidade, que durou dois dias. O professor para quem eu trabalhava estava para ir à sessão, mas teve um conflito na agenda, e eu fui para o representar e à universidade. O objectivo principal era sensibilizar alguns do representantes das empresas da área; algumas das empresas que participaram fazem parte da lista das 500 maiores empresas dos EUA.

Uma das primeiras lições que aprendemos é que para nos defendermos contra terrorismo temos de pensar como um terrorista. É uma coisa estranha pensar em como maximizar a morte dos outros ou o seu mal-estar porque, às tantas, se a nossa imaginação é boa, começamos a duvidar de nós próprios: será que somos mesmo boas pessoas ou seremos nós tão maus quanto os terroristas?

Para os terroristas a lei não interessa, o respeito pelas pessoas e pela sua vida e bem-estar são inexistentes, e não há verdadeiramente uma censura moral porque eles conseguem arranjar justificação para cometerem as maiores atrocidades. Já para nós que não temos esse modo de pensar, estamos constantemente a embater-nos com obstáculos morais e mentais. E depois é também preciso uma predisposição para entretermos as ideias mais malucas e sermos destemidos.

Contrastem isto com o tipo de pessoas que trabalha nas empresas e é responsável pela segurança das mesmas. Muitas vezes são pessoas de idade, polícias reformados, pessoas que já têm uma carreira longa, foram promovidas várias vezes até terem aquela posição de responsabilidade, etc. Estas pessoas já têm um modo de pensar que não é tão imaginativo como o dos jovens, já têm muito mais dificuldade em pensar fora da caixa.

Foi isso que eu notei nos representantes das empresas que lá estavam. Por exemplo, o instrutor dizia-nos que tínhamos de espiar chat rooms, às vezes fazer-nos passar por terroristas, aliciar os malucos a revelarem os seus estratagemas, etc. Mas em 2004, uma pessoa de 55 ou 60 anos, como eram alguns dos representantes das empresas, não pareciam saber o que era uma chat room nem como usá-la. Será que os representantes actuais sabem? Até poderíamos ter de contratar alguém para se infiltrar nesses grupos de pessoas.

Quando chegou a altura para o exercício prático em que tivemos de delinear uma estratégia para assegurar a segurança de uma empresa fictícia, os meus colegas das empresas não tinham ideias nenhumas, a não ser telefonar à polícia e coordenar esforços com as autoridades. E o mais estranho é que o instrutor tinha acabado de nos dizer o que tínhamos de fazer, logo bastava repetir grande parte do que ele tinha dito.

Foi nesse treino que me deram o livro de receitas de armas químicas e biológicas. Eu lembro-me de desfolhar aquilo e ficar chocada porque muitas delas pareciam fáceis. Os endospóros de antraz surgem na natureza em todos os continentes. Os animais que pastam podem ingerir os endospóros e ficar contaminados e a via mais comum para alguém ficar doente com antraz é ingerir carne contaminada, pois o antraz não é contagioso sem ingestão.

Se se recordam, depois dos ataques de 11/9/2001, um fulano enviou cartas com endospóros de antraz a várias pessoas nos EUA, inclusive a membros do Congresso. Esse ataque começou uma semana depois dos ataques terroristas. Cinco pessoas morreram porque abriram as cartas e inalaram os endospóros. Causou terror, mas não causou um grande número de vítimas porque o antraz não é uma arma muito eficaz. Mas imaginem que em vez de se enviar em cartas individuais, os endospóros de antraz são enfiados em mailings publicitários, que são enviados simultaneamente para milhares de pessoas. A coisa mais banal que eu faço é abrir essas cartas para riscar o meu nome e meter aquilo no lixo. É uma coisa que faço todos os dias.

Outra arma biológica da qual me recordo do livro era a ricina, que é um biproduto da extracção do óleo de rícino. Este óleo é usado para fortalecer os cabelos, por exemplo. Já a ricina é altamente perigosa: uns grãozinhos do tamanho dos grãos de sal refinado podem matar uma pessoa adulta. No treino também falaram do gás sarin, usado recentemente na Síria, e que também foi usado numa ataque no metro de Tóquio, em 1995, pelo culto religioso Aum Shinrikyo. E depois havia as receitas para bombas e outras coisas, já nem me lembro bem. Algumas usavam ingredientes que estavam à venda em lojas que vendiam fertilizante, por exemplo.

Uns anos mais tarde, tive oportunidade de trabalhar num estudo onde se avaliava o nível de preparação da indústria oleaginosa americana para acidentes de bioterrorismo. Era um esforço multi-estadual, mas o Arkansas foi o primeiro a completar o estudo em grande parte devido ao meu esforço. Quando vejo um silo de armazenagem de cereais, lembro-me sempre dos riscos de terrorismo: o pó dos cereais é altamente inflamável. Um silo pode ser usado para causar uma explosão enorme, o que é perigoso caso esteja perto de uma zona residencial. Estar na proximidade de casas não é muito comum nos EUA, mas é mais comum na Europa porque a densidade populacional é maior.

Hoje em dia, com o aumento da circulação de comboios cheios de petróleo extraído das formações de xisto que passam por cidades americanas, um comboio com vários vagões de petróleo ou gás pode ser usado como uma arma de terrorismo.

Só estamos limitados pela imaginação dos terroristas...

Nota: Sugiro a leitura do relatório de 1999 do governo americano acerca de quem se torna terrorista, apesar de desactualizado. O meu livro foi-me dado durante o meu treino anti-terrorista.



2 comentários:

  1. Parece que o livro em PDF foi substituído por um monte de zeros. Ou seja, já não está disponível.

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  2. Está aqui:
    THE SOCIOLOGY AND PSYCHOLOGY OF TERRORISM: WHO BECOMES A TERRORIST AND WHY? A Report Prepared under an Interagency Agreement by the Federal Research Division, Library of Congress
    http://www.loc.gov/rr/frd/pdf-files/Soc_Psych_of_Terrorism.pdf

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