terça-feira, 5 de abril de 2016

História gótica

27. Estas saudades sentira-as em outras ocasiões, mas não sabia de quê. Só sabia que eram fortes, e melancólicas, e impotentes.
Por vezes as saudades são alegres, porque aquilo de que se tem saudades está prestes a ser reencontrado. E as saudades de coisas passadas ou de pessoas mortas estão mescladas de recordações que fazem sorrir, as recordações daquilo que nos faz desde logo ter saudades do que se perdeu, de quem se perdeu. Mas saudades sem objecto são terríveis. E não é apenas por não se saber do que se sente falta, do que se gostaria de não ter perdido, do que se quereria reencontrar. As saudades sem objecto são saudades puras. Nenhuma memória feliz as acompanha. Nenhuma esperança. Só o vazio que nunca foi preenchido e que nunca se preencherá. "Se ao menos eu conseguisse descobrir o que é", pensava Viorica, "talvez pudesse fazer alguma coisa." Assim, nem podia acender uma vela por alguém que já se foi. Ou por um tempo esgotado. Da infância não era. Viorica lembrava-se de ser pequena e da mãe sempre sisuda. Sempre cansada. Do pai soturno. Dos irmãos quezilentos e ruidosos, que atiravam pedras aos melros e viviam como se ela não existisse. Do tempo em que Stepan, que agora era seu marido, a cortejara, se é que se pode dizer que a cortejara, também não tinha saudades. Numa aldeia pequena que apenas quer sobreviver, os casamentos são etapas pragmáticas por onde toda a gente passa. Este fica bem com esta, esta com aquele. Não há o luxo do romance, nem se sabe o que isso seja, ninguém lê e por isso ninguém imagina que as paixões possam ser um motivo para escolher, que haja escolha e que ela tenha a ver com sentimentos vápidos. O padeiro casou com a filha do agricultor porque assim se resolvia o fornecimento de cereais para fazer o pão. O taberneiro casou com a filha do ferrador porque ela estava habituada a pôr na ordem os homens que se reuniam na forja do pai para discutir as qualidades dos cavalos e das ferraduras. Ela casara com um mineiro porque o seu pai e os irmãos eram mineiros também e não lhe custaria continuar a fazer o que sempre tinha feito. Stepan sentava-se na sala com o pai, os dois quase sempre calados. Nem olhava para ela. O que o pai precisava de saber sobre o homem a quem entregaria a filha sabia-o pelo que via na mina. Stepan era enérgico a empurrar pelos trilhos os vagões carregados de carvão. Era corajoso a avançar pelos novos túneis que representavam novos perigos. Nunca se queixava. Não bebia. Um cachimbo à noite não se podia dizer que fosse um vício. Foi rapidamente aprovado, a mãe arranjou o que havia a arranjar no vestido amarelado que ela e as irmãs já tinham usado nos seus casamentos, chamou-se o padre e foram servidos bolos. No baile que se seguiu à cerimónia arranjaram-se mais enlaces e calcularam-se mais conveniências. Lembrava-se de ter ficado triste, que arrelia era experimentar tantos sentimentos, medo na infância, resignação na adolescência, tristeza no casamento, saudades agora. De quê, perguntava-se. Era incómodo também querer saber, seria tudo mais fácil se apenas sentisse sem pensar nisso, talvez elas desaparecessem, as saudades que a faziam levantar os olhos para o castelo.

1 comentário:

  1. Talvez Viorica não sentisse própriamente saudades, mas sim... a falta de motivos que a fizessem sentir saudades.
    Talvez lhe tivesse faltado aquele encontro com o inesperado forasteiro, que sempre sonhara ir acontecer quando ao final do dia se dirigia com a "malhada" e a "rabina" até à margem do ribeiro, para se dessedentarem.
    Certa vez ainda julgou escutar um rumor e voltando-se bruscamente, pareceu-lhe avistar um vulto, uma sombra fugaz, passando por trás dos arbustos que bordejavam o ribeiro. Nesse fim de dia o coração bateu-lhe mais acelerado, sentiu que as pernas lhe fraquejavam um pouco e à noite, deitada na enxerga, aconchegada nos velhos cobertores, adormeceu sonhando com um rosto masculino de olhar meigo e uns lábios finos que tocavam os seus. De manhã, ao acordar ainda sob o efeito hipnótico desse sonho, estendeu o braço e sentiu que o espaço vazio ao seu lado da cama, se encontrava estranhamente morno, como se até há pouco tempo, outro corpo tivesse permanecido deitado junto ao seu.

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