16. São muitas vezes misteriosas as frases que atingem a fama, mas não é o caso desta. Percebe-se perfeitamente o que fez com que durasse. E se espalhasse. De tal modo que rara é a língua que a dispensa. Sabe-se o que significa e de onde veio, e não há registo de um único caso de uso desastrado ou embaraçoso. Pode ser dita por pessoas de todas as idades, e dizendo-a nem o ateu se contradiz nem o crente blasfema. Pouco se presta a um emprego irónico. Nunca ofendeu ninguém. Não faz com que se desconfie de quem a diz. É cordial. E, mais ainda, dá muito jeito. Por esta altura já o leitor imagina de que frase se trata. Porque também o leitor lhe reconhece as virtudes e as vantagens. Teria que ser duro de coração e indiferente ao bem público aquele que a dispensasse. Cruel até aquele que dela escarnecesse. Se os animais falassem, usá-la-iam. Há quem investigue se a usam ou não e, não sendo conclusivos os resultados, há estudos que se inclinam francamente na direcção do sim. Ernestina jura que a ouviu das suas galinhas, mas, sendo anedótica, esta evidência não serve. Ainda assim, predispõe. Desde que não empurre. Mas os estudos nem sequer começaram pelas galinhas. José Manuel tinha um burro, a quem estimava. Todas as manhãs lhe levava a palha antes ainda de comer o seu pão com queijo. Mas houve um dia em que ferrou o dente no pão antes de dar o pequeno-almoço ao burro. É que o queijo dessa manhã era daqueles que cheiram particularmente mal, o que significa que era particularmente bom. E deixou-se a boca de José Manuel tentar pelo nariz do mesmo. Assim conspiram os órgãos do nosso corpo. As situações que envolvem queijo são das mais traiçoeiras. Há que evitá-las como evitou Ulisses o canto das sereias, tapando o órgão condutor da perversão. Com cera, como fez o mesmo Ulisses, ou com uma mola da roupa, que é o mais normal. Porque não há assim tanta cera à mão. O órgão que deve ser tapado é o nariz e não a boca. É mais eficaz resistir à tentação desconhecendo-a. E é o nariz quem no-la apresenta quando se trata de queijo. Todos sabemos que mais facilmente se é santo na primavera, quando andam à solta as alergias e se entopem os narizes. Tal como sabemos que atingir a santidade pela boca se faz melhor no inverno, na época das faringites. Ora essa, terá então José Manuel ouvido sair da boca do burro ao pedir-lhe desculpa por lhe levar a palha de boca cheia.
Ao ler, foi como se tivesse estado a ver alguém pensar como é que os nossos antepassados aprenderam a contar para além de 4 e a pensar 2 coisas ao mesmo tempo. E a frase mágica? Qual quê! Partiu mesmo de alguma?
ResponderEliminarA frase é "Ora essa", dita pelo burro no final.
ResponderEliminarAproveito para pedir desculpa pela formatação : só reparei agora que ficou tudo torto. Mas ainda assim legível, espero.
Já reformatei.
EliminarObrigada, Luís!
EliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarTexto muito bom e cheio de inteligencia !!!
ResponderEliminarLeitura magnifica e fora do habitual.