segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Encontros com o espelho

“Quando finalmente me levantei e aprendi a caminhar novamente, apanhei um espelho e dirigi-me a um outro maior, fixo, para me olhar, sozinha. Eu não queria que ninguém soubesse como me sentia ao ver-me pela primeira vez. Mas não houve barulho nem choro; não gritei de raiva quando me vi. Simplesmente fiquei estarrecida. Aquela pessoa no espelho não poderia ser eu. Sentia-me por dentro como uma pessoa comum, feliz, saudável – não como aquela que eu via! Ainda assim, quando virei o rosto para o espelho, lá estavam os meus próprios olhos olhando para trás, ardentes de vergonha… quando não chorei, nem tão-pouco fiz qualquer barulho, tornou-se impossível para mim falar sobre isto com alguém, e a confusão e o pânico provocados pela minha descoberta foram trancados dentro de mim para encará-los sozinha, durante muito tempo ainda.
Aos poucos esqueci o que havia visto no espelho. Aquilo não podia penetrar no interior da minha mente e converter-me em parte integral de mim. Sentia-me como se não houvesse nada comigo; era apenas um disfarce. Mas não era o tipo de disfarce que é voluntariamente colocado pela pessoa que o usa com o objectivo de confundir os outros sobre a sua identidade. O meu disfarce foi colocado em mim sem o meu consentimento ou conhecimento, como ocorre nos contos de fadas e foi a mim mesma que ele confundiu quanto à minha própria identidade. Eu olhava-me no espelho e era tomada de horror porque não me reconhecia. No lugar em que me encontrava, com aquela exaltação romântica persistente em mim, como se eu fosse uma pessoa favorecida e afortunada, para quem tudo era possível, eu via uma figura estranha, pequena, lastimável, horrenda e um rosto que se tornava, quando eu o olhava fixamente, doloroso e vermelho de vergonha. Era só um disfarce, mas estava em mim para o resto da vida. Estava lá, estava lá, era real. Cada um desses encontros era como uma espécie de explosão na cabeça. Deixavam-me sempre entorpecida, muda e insensível até que, aos poucos, obstinadamente, a forte ilusão de bem-estar e beleza pessoal voltava a invadir-me; eu esquecia a irrelevante realidade e ficava despreparada e vulnerável novamente.”

Erving Goffman, in Stigma – notes on the management of spoiled identity

2 comentários:

  1. Gostei muito, Zé Carlos. Eu acho que tive uma coisa ligeiramente parecida por causa dos meus cabelos brancos. O eu do espelho e o eu cá de dentro estavam em dissonância. A solução foi começar a pintar os cabelos. Tive sorte que o meu caso fosse de fácil correcção.

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