sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Coisas da vida...

Quando vim pela primeira vez para os EUA, aterrei no Bible Belt--quer dizer, primeiro aterrei no JFK, em Nova Iorque, mas o destino final era Oklahoma. A minha universidade, a Oklahoma State University, fica situada numa pequena cidade chamada Stillwater, cuja população era para aí 50.000 almas, e fica a 45 minutos da área metropolitana de Oklahoma City e a uma hora da área metropolitana de Tulsa.

A Oklahoma State University é uma universidade muito popular para os estudantes internacionais. Naquela altura, cerca de 10% dos alunos eram internacionais porque a universidade oferecia uma boa relação qualidade/preço e o campus era relativamente seguro. Para além disso, não há dúvida que em termos de organização, recepção de, e coordenação com os estudantes era, e é, uma universidade muito boa. Iam buscar os alunos ao aeroporto, facilitavam o quarto na residência, marcavam os exames de inglês, tínhamos sessões de orientação para nos aclimatizarmos à universidade, faziam workshops de impostos, arranjavam-nos emprego, etc. Escolhi uma das residências mais baratas e que era upper-division, ou seja, preferencialmente iam para lá alunos que andavam, pelo menos, no terceiro ano da universidade. Era barata porque não tinha ar-condicionado central, mas o edifício era glorioso.

A minha residência era famosa no campus por ter um estilo de vida em que os residentes eram uma grande família--uma grande família muito promíscua. Stout Hall, assim era chamada, tinha sido uma residência só de mulheres e foi baptizada com o nome de uma das suas directoras, Julia Stout. Nós, os seus residentes, somos os Stouties. Os Stouties eram, e são, muito malucos, criativos, e uma comunidade extremamente unida. Fui viver para Stout Hall em 1995 e ainda mantenho contacto com várias pessoas que lá conheci. Eles são a minha primeira família aqui nos EUA.

Os Stouties são uma grande mixórdia de pessoas: há religiosos, ateus, homossexuais, heterossexuais, drogados, strippers, pessoas com desordem bipolar, misantropos, génios, ignorantes, etc. Juntos, íamos às cantinas, saíamos, estudávamos, sofríamos, fazíamos férias, etc. Eles são uma das razões pela qual eu quis voltar para os EUA. São pessoas que me ajudaram a crescer imenso. Um dos meus amigos em Portugal admira-se muito por eu conseguir manter amizades com um leque de pessoas muito diferentes. Não quero ser apenas amiga de pessoas como eu, acho isso muito limitativo. Tive um namorado que não gostava de homossexuais; eu disse-lhe que, se era assim, mais valia acabarmos porque eu tinha muitos amigos que eram gay e não estava para deixar de conviver com eles. Ele mudou de ideias. Por acaso, esse rapaz é alérgico a gatos, mas eu nunca tive gatos aqui. Já sei que se dissesse que o tinha tentado despachar por causa de um gato, o jornal Sol montava-me uma campanha de marketing bestial, à la Marta Rebelo.

Vivi nessa residência cerca de quatro anos e só saí porque fechou para renovações. Lá aprendi uma coisa: há muita gente que teve experiências horríveis na vida e que, de manhã, se levanta e tenta arranjar forma de viver uma vida melhor todos os dias. Havia pessoas que tinham sido abusadas sexualmente, vítimas de maus tratos, homossexuais que eram rejeitados pelas suas famílias, outros que ainda não tinham tido coragem de se assumir, pessoas doentes... Mas todos falavam sobre as suas lutas diárias e tentavam construir uma vida que fizesse sentido.

Quando me perguntam se sei de casos de aborto, é claro que sei. Um dos casos que me foi mais próximo aconteceu a uma das minhas amigas de lá. Antes de a conhecer, ela tinha sido violada e tinha engravidado, mas esse filho ela deu para adopção; ela própria era adoptada. Depois tornou-se stripper, e eventualmente entrou na universidade onde a conheci, quando ela estava no primeiro ano. Ela já não dançava, então. Queria ser jornalista como a Barbara Walters. Eu ensinava-lhe matemática porque ela tinha uma deficiência no teste de admissão à universidade e teve de ter aulas de matemática básica.

Apaixonou-se por um rapaz que era muito bom aluno, já estava no quarto ano, e a quem ofereceram um emprego antes de terminar o curso. Namoraram, ela era louca por ele, e engravidou. A família dele, que gostava dela antes dela engravidar, tratou-a mal depois. Tanto ela como o namorado fumavam marijuana e comiam cogumelos alucinogénicos que ele apanhava nuns campos quaisquer. Havia todo um grupo de estudantes que tomava drogas na minha residência, de vez em quando ofereciam-me, e eu recusava. Não gosto muito de coisas que me fazem perder o controle. Quando ela descobriu que estava grávida parou de tomar, mas recomeçou quando decidiu ter um aborto, pelo qual o namorado pagou.

A razão principal para ela escolher o aborto, a ter o bebé e dá-lo para adopção, foi por achar que não conseguiria emocionalmente ter outra criança e dá-la outra vez, como tinha acontecido quando tinha sido violada. É claro que apoiei a decisão dela, mas disse-lhe que achava que ela devia aplicar-se mais no estudo, esquecer o namorado, orientar a vida. Ela tinha ido para a universidade para estudar, não tinha sido para arranjar namorado, dizia-lhe eu.

Ela chumbou a meio do ano, passou o resto a fumar marijuana no quarto e a sair à noite. Podem contar comigo para tudo, mas não consigo ter "pity parties" para ninguém enquanto os vejo arruinar a sua vida e ficar calada. Disse-lhe muitas vezes que não achava que ela devesse seguir esse caminho. Custou-me vê-la falhar tão cedo, nem um ano terminou. Para além disso, estava a acumular dívida para estar na universidade e a usar as poupanças da família. Quem vem de famílias com recursos escassos, não tem margem para falhar. É injusto, mas é a verdade. Perdemos contacto quando o ano terminou, pois ela teve notas demasiado baixas para poder continuar.

Alguns anos depois reactivámos a amizade. Tinha voltado para a escola, estava a tentar fazer o curso. Já deviam ter passado para aí 12 ou 13 anos desde que nós tínhamos perdido contacto. Com o tempo ela acabou por apreciar o meu ponto de vista e, de vez em quando, telefona ou envia email se precisa de falar comigo. Tento acompanhá-la e, se precisa, dou o meu apoio, mas as decisões cabem a ela e eu tenho de respeitar, mesmo quando não concordo. Apenas me permito dizer que não concordo.

3 comentários:

  1. Olá Rita,

    E faz muito bem. Os amigos não "servem" (só) para concordar connosco, servem muitas das vezes para nos retirar de uma visão auto-fixativa que todos temos e nos dar outras perspectivas: concordemos ou não. O importante - sejam amigos ou não - é respeitar o outro que discorda de nós, não no sentido de aceitarmos as suas ideias ou as considerar válidas, mas antes critica-las pelo que são e onde achamos que falham e não entrar em discussões ad hominem.

    Quando foi do último referendo à lei do aborto em Portuga, fartei-me de dizer a pessoas pró-vida que o pior que podiam fazer (e que podiam pensar, aliás) era considerar e chamar as pessoas do outro lado de assassinas e falar de holocaustos. Porque não se estava a discutir a questão (e a questão do aborto é só uma - como e quando se define um ser humano independente como "pessoa" da sua mãe) mas sim a atirar convicções e ideologias à cara.

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    1. Olá Carlos!
      Percebo perfeitamente o que queres dizer. Um dos problemas que tenho com as pessoas pró-vida é que só são pró-vida antes de haver vida. Depois de uma criança nascer, a sua vida deixa de importar. Nos EUA vês muita gente que é pró-vida e pró-pena de morte, ou vê-se os que são pró-vida assassinar os médicos que fazem abortos. Não percebo como conciliam essas coisas.

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    2. Aí está - é uma posição que eu não compreendo nem aceito. Se é para defender a vida humana (e eu acho que é uma posição que é de defender), então tem de se defender todas. Admitir a pena de morte é bárbaro, até por mais que um motivo (As Reflexões sobre a Guilhotine, do Camus, explica).

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