quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

“Sou a favor da liberdade de expressão, mas…”

“Sou a favor da liberdade de expressão, mas…”. Este “mas” é hoje o maior inimigo da liberdade de expressão. A liberdade de expressão não se pode defender de forma condicional, com adversativas pelo meio. A melhor maneira de combater argumentos “grosseiros” e “ofensivos” (conceitos sempre subjectivos) não é tentar impedir que sejam expressos, é combatê-los com outros argumentos, por vezes violentos também. O “direito a ofender” é um dos custos da liberdade de expressão. Um custo que vale a pena suportar.  A censura oficiosa, insidiosa, mas violenta dos pseudodefensores da liberdade de expressão é muito pior. Tarde ou cedo, vira-se contra os próprios censores pós-modernos, ditos progressistas, que passam parte do seu tempo a fazer petições online a pedir a cabeça de fulano ou sicrano porque, em seu entender, disseram coisas inadmissíveis - muitas vezes, coisas ditas em privado. Como há sempre alguém susceptível de se sentir ofendido ou agredido com simples palavras, os progressistas acabam por ser vítimas da teia que eles próprios teceram. Hoje, por exemplo, certos grupos de feministas estão proibidos de entrar em universidades anglo-saxónicas porque o seu discurso pode ofender algumas almas mais sensíveis. Idem para homossexuais. Não haja dúvidas: a liberdade de expressão está em perigo no ocidente. Os novos censores agem sempre em nome de um direito qualquer, de uma boa intenção qualquer e, por isso, se torna tão difícil para o cidadão comum alcançar o perigo do que está em jogo. A liberdade de expressão, um pilar da civilização ocidental, construído, durante séculos, com o suor, sangue e lágrimas de muita gente, não está garantido para toda a eternidade, como, aliás, sucede com tudo o que sai de mãos humanas. É uma luta sem fim. Para começar, é bom que tenhamos todos consciência disso. 


PS: aconselho vivamente a leitura do livro "Direito a ofender: a liberdade de expressão e o politicamente correcto" de Mick Hume, que me foi aconselhado pelo meu querido amigo Nuno Amaral Jerónimo.

14 comentários:

  1. Mas convém não esquecer que o "direito a ofender" implica também o seu contraparte, o "direito a sentir-se ofendido". É que por vezes parece-me que alguns auto-proclamados defensores do "direito a ofender" defendem-no às segundas e às quartas-feiras, mas quando na sequencia de exercerem o seu "direito a ofender", são depois, eles, alvos de comentários indignados (normalmente nas redes sociais), amuam e poem-se a dizer "é a censura do politicamente correto! Já não se pode dizer nada!"; isto é, parece que alguns defendem, não apenas o direito a dizer coisas controversas, mas o direito a dizer coisas controversas sem gerar controvérsia.

    [Atenção que convém distinguir entre reprovação social generalizada e queixas a comissões oficiais - mas dá-me a ideia de que nenhum dos lados nestas polémicas se esforça muito por distinguir as duas coisas]

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  2. E, já agora, convém notar o que me parece o paradoxo de muitas vezes alguns dos que mais reclamam da "censura do politicamente correto" serem também os que mais reclamam do "relativismo", que mais dizem "não se pode ser intolerante com a intolerância" e que é preciso "firmezea na defesa dos nossos valores" ou que mais defendem, quando se fala em abstrato, o "direito à discriminação privada" (lembro-me, nomeadamente, da remoção física de Hans-Hermann Hoppe da Universidade do Nevada).

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  3. Já agora, algo que escrevi há uns tempos que acho que tem a ver com isto (se calhar até já referi isto antes, mas enfim...)

    http://ventosueste.blogspot.pt/2016/03/liberdade-de-expressao-estado-e.html

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  4. No fundo, um dos problemas aqui é que o conceito de "censura oficiosa" (para usar a expressão do JCA) tem a delicadeza de uma superfície congelada de um rio; poderemos considerar que liberdade não requer apenas que não haja uma lei do Estado central proibindo determinadas ações, e que requer também um ambiente social de tolerância; mas na prática (ou se calhar mesmo na teoria), não é muito fácil de distinguir entre combater a censura social e praticar censura social (afinal, combater a censura social sobre um dado comportamento se calhar é a mesma coisa que praticar censura social sobre quem censura socialmente o referido comportamento). Talvez a diferença entre "censura social" e "combater a censura social" seja numérica - uma atitude de intenso repúdio perante determindade ideais, opiniões, mentalidades, etc. talvez só seja "censura" se os "repudiadores" forem dominantes na sociedade e os "repudiados" uma minoria, mas mesmo assim tenho dúvidas que seja possível um equilíbrio sem censura social (talvez se houverem várias facções culturais antagónicas suficientemente fortes - talvez teha sido a situação no mundo ocidental nos anos 70/80, em que tanto o Timothy Leary como o reverendo Jerry Falwell poderiam ser considerados mainstream?)

    [Poço desculpa por estar a inundar o post de comentários, mas é que eu clico "Publicar" e depois lembro-me de mais coisas]

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  5. É por isso que, quando me ofendem, eu ofendo. Mas a malta que me ofende não gosta que eu a ofenda e acham que eu sou mal-educada. Esta falta de simetria incomoda-me muito. Depois, há a questão do que é a boa educação: será que é sempre, versão Novo Testamento, "oferecer a outra face"? Ultimamente, tenho achado muito mais piada ao "olho por olho" do Antigo Testamento.

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  6. Miguel, podes inundar à vontade o post de comentários. Claro que tens razão: quem defende o direito a ofender tem de estar preparado para ser ofendido. E também acho que existe e sempre existiu e existirá a tal censura social e muitas vezes são as pessoas que se autocensuram para não serem excluídas ou marginalizadas. A censura oficiosa de que falo é mais activa, passa por uma pressão nomeadamente junto das autoridades oficiais, as quais, muitas vezes, acolhem esses pedidos, na prática, de censura e até fazem leis e tudo - hoje, no Reino Unido há várias leis que criminalizam palavras consideradas ofensivas, hoje no Reino Unido são presas milhares de pessoas por delito de opinião. Por exemplo, hoje uma jornal satírico como o Charlie hebdo é impensável no RU. Os EUA graças à sua Primeira Emenda estão, apesar de tudo, mais protegidos, já que esta proíbe legislação que ponha em causa a liberdade de imprensa.
    Rita, claro que o ideal seria haver um mundo só com pessoas responsáveis e educadas, que pensassem antes de falar ou escrever, etc. E, concordo contigo, ao insulto o melhor às vezes é responder com insulto. É preferível isso a tentar silenciar, oficial ou oficiosamente, os idiotas, racistas, mal-educados, etc. Um episódio curioso. No Reino Unido, nos anos 30, os sindicatos conseguiram que o governo proibisse manifestações pró-nazis; uns tempos depois, foi usado o mesmo argumento para proibir manifestações dos sindicatos. O feitiço vira-se sempre contra o feiticeiro.

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  7. "A liberdade de expressão está em perigo no ocidente [...] pilar da civilização ocidental, construído, durante séculos, com o suor, sangue e lágrimas de muita gente".

    Nem mais.

    O que, por vezes, alguns não atingem (e outros atingem bem demais) é a diferença entre duas atitudes possíveis perante o que consideramos ofensivo, seja de que natureza for:

    1. A reacção/resposta/contra-agressão;

    2. O silenciamento ou censura, preventivo ou subsequente.

    A censura/silenciamento do potencial ofensor, particularmente a preventiva, é que é a inimiga da liberdade e a ferramenta da correcção política marxista-cultural.

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    1. Obrigado. Em poucas palavras, resumiu bem o problema. A solução, a única solução compatível com a liberdade de expressão, é a primeira atitude.

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  8. Corrigindo uma coisa que disse acima: "(...) no Reino Unido, há uma média de 25 mil processos anuais por crimes relativos ao discurso, e isto apenas no âmbito da Secção 5 da Lei da Ordem Pública de 1986, metade das quais acaba em condenações. Mas, para as instituições oficiais, não se trata de censura, pois essas detenções decorreram do uso de palavras ou comportamentos que os tribunais consideraram ameaçadores ou abusivos" (Mich Hume in "Direito a ofender", p. 64)

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    1. É chocante e, como referiu, é uma parte da indústria de difamação em que as palavras são vistas como entes independentes do contexto.

      Por ter regras assim o Reino Unido tem sido a jurisdição mais usada neste tipo de turismo jurídico, porque, nos EUA, essa possibilidade estava limitada pela Primeira Emenda à Constituição. Ainda assim, foi através de uma lei de Obama, em 2010, que o país ficou relativamente abrigado - no Reino Unido existiu uma iniciativa similar: "The UK Defamation Act 2013" e não sei que impacto teve, porque as minhas leituras foram anteriores.

      Em Portugal tem havido soluções para todos os gostos: (1) A administração de uma empresa conseguiu escapar a uma cilada invocando que "a arte é um direito, não um risco"; (2) Um advogado teve de defender-se em tribunal por ter contado uma anedota contra certa pseudociência; (3) Um contribuinte que, através de email, prometeu ao chefe do serviço de finanças "partir os cornos do fisco" ganhou a causa, sem "partir" nada a ninguém, porque, na segunda instância, se conclui que nenhum funcionário tinha apresentado queixa - ao que parece eles consideraram que não fazia sentido interpretarem que eram "cornos" deles mesmos :-); (4) Um indivíduo que andou por aí a fazer uma lista de juízes em cujo nome estivesse certa palavra, prometendo que os mataria a todos, tendo tido a "sorte" de nenhum o tomar a sério, pelo que o assunto foi extinto por força do bom-senso que tiveram; (5) Noutros casos o Estado Português viria a ser condenado no Tribunal Europeu; (6) Ultimamente a jornalista Fernanda Câncio reportou o que considera grosserias jurídicas de uma juiza que parece ter escrito palpites como se estivesse a decidir uma causa cível entre heterónimos da vida pública, da vida privada e da vida íntima. Aparentemente, porque a juiza não tem experiência em Tribunais de Família...

      É uma praga que vive da escassez de aprendizagem sobre a Liberdade e sobre os Factos.

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  9. O Ricardo Araújo Pereira fez un comentários muito pertinentes sobre o assunto no Observador. O meu preferido é mesmo este:
    "Parece-me hoje que as pessoas têm, mais do que achar que têm o direito de se ofender, que têm — ninguém lhes tira o direito de se ofender –, acham que têm o direito de não ser ofendidas."

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    1. É isso mesmo. Vivemos, ou parte-se do princípio que vivemos, num mundo de gente ultra-sensível que não aguenta ou pode ficar traumatizada com simples comentários, como se as palavras equivalessem a acções. O pior de tudo isto é que não serve de nada tentar silenciar os broncos, racistas, machistas, etc., pensando que assim os educam ou convertem. Como explicava Locke: "a preocupação com a salvação de um homem pertence-lhe apenas a ele" dado que "a fé não é fé se não se acreditar nela".

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  10. Ofender ainda é como o outro. O problema é que há gente com poder político que não encontra outra forma de fazer vingar os seus pontos de vista se não empenhar-se em silenciar os adversários
    http://www.zerohedge.com/news/2016-11-23/merkel-declares-war-fake-news-europe-brands-russias-rt-sputnik-dangerous-propaganda

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    1. É verdade, isso é outro problema. Muitos destes movimentos de censura oficiosa ou insidiosa partem de grupos activistas, mas as autoridades oficiais aproveitam-nos muitas vezes para introduzirem a lei da rolha.

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