terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Uma forma de detectar um tolo

Aos 42 anos, Marco Túlio Cícero (106 a.C - 43 a.C.),  um dos maiores oradores da Antiguidade, foi eleito cônsul, o mais alto cargo na República. Um feito notável. Conseguiu o supremo imperium (o poder de comandar concedido pelo Estado a um indivíduo), como um "homem novo", sem antepassados, sem ter riqueza, nem a força militar atrás de si. A república caminhava para o fim, afogada em votos. As eleições eram anuais e Cícero costumava dizer que governar o Estado não era mais do que ocupar o tempo disponível entre as eleições. Com Pompeu, o Grande, afastado, em guerra por terras do Oriente, à época o "homem mais importante do mundo", o general e milionário Crasso (o tal do "erro crasso") e o implacável César (um homem assustadoramente temerário e que rivalizava em inteligência, perspicácia e génio com Cícero) haviam congeminado um esquema brilhante e a carreira de Cícero parecia acabada. A capacidade "miraculosa" de recuperação é um dos traços principais de qualquer político bem-sucedido. Como gostava de dizer Cícero, quando estamos sem saída, a única solução é partir para o combate, e é no meio da luta que podemos vislumbrar uma saída possível.
Pois bem, chegou o dia das eleições em Julho e Tirão (o inventor da estenografia), secretário pessoal de Cícero e narrador de "Imperivm", diz-nos como detectar um tolo: 
“Pode sempre detectar-se um tolo: é o homem que diz conhecer qual é o candidato que vai ganhar uma determinada eleição. Porém, uma eleição é algo de vivo, poderá até dizer-se que não existe seja o que for mais vigorosamente vivo, com milhares e milhares de cérebros, pernas, olhos, pensamentos e desejos, que podem ziguezaguear, voltar-se e tomar direcções que ninguém previra, muitas vezes só pelo gozo de provar que os sabichões estavam enganados. Foi uma das coisas que aprendi no dia passado no Campo de Marte”.

Robert Harris in “Imperium”

7 comentários:

  1. José Carlos Alexandre,

    Interessante, sem dúvida.

    Não sei, no entanto, se consistente com as fontes em que o autor encheu o pote com que cozinhou a sua novela.
    A ficção sustentada em personalidades e factos históricos é apelativa, alcança lugares cimeiros nos rankings dos best sellers. Resumindo, num chavão comum "é o que está a dar". O sr. José Rodrigues dos Santos é, por agora, entre nós, o exemplo mais bem-sucedido na capacidade de engrolar a história. Ainda não alcançou a projeção mundial e os proveitos um Dan Brown mas continua afanosamente a trabalhar para isso.
    Não me agrada a História ficcionada porque nem é ficção nem é História mas uma forma de fazer fortuna distorcendo, porque inventando, uma história onde o leitor desprevenido é levado a absorver como realidade aquilo que não passa de ficção.
    Dir-me-á: Mas, por exemplo, Shakespeare não foi recorreu à História para construir a mais grandiosa obra da literatura ocidental? Recorreu, e não tão raramente traiu, mas a sua genialidade é tanta que são quase irrelevantes para o leitor ou expectador os nomes dos personagens. Podiam ser outros e não se perturbava a essência da obra. Para além disso, a literatura como a arte, ou é original ou não é arte nem literatura. Um fulano que hoje pinte como Degas pintava pode ser bem-sucedido (e muitos são) se o fizer como falsário. Se for suficientemente habilidoso mas honesto, assumindo a sua autoria, não venderá as obras que produza pelo preço que lhe custam as telas e as tintas.

    O último período do seu texto é exemplar desta forma insinuante de revisitar o passado e moldá-lo às recentes falhas estrondosas das previsões sobre o Brexit ou a eleição de Trump.
    Tirão, se escreveu o que Harris cita, deve ter, momentaneamente, esquecido que as votações na Roma Antiga dependiam mais da força das armas e do poder do dinheiro que da vontade manipulada pelas redes sociais da actualidade.

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    1. Caro Rui Fonseca, concordo consigo, mas só em parte. É verdade o que diz sobre o Dan Brown e o Rodrigues dos Santos, mas eu não os poria no mesmo saco que o Robert Harris ou, por exemplo, o Vargas llosa (superior, sem dúvida, a Harris) que faz também esse exercício que é o de escrever ficção a partir de factos históricos. Nestas eleições que Cícero ganhou, já havia um milhão de cidadãos, ou seja, um milhão de eleitores. Cícero ganhou sem um exército atrás de si, sem fortuna ou antepassados. Isto são factos. Já a conspiração de Crasso e César é apenas uma possibilidade, uma especulação, como o narrador Tirão admite. Cícero era um político populista, um demagogo e, ironicamente, terá ganho essas eleições graças ao apoio da classe que mais o desprezava e odiava: os aristocratas. Sim, a frase de Tirão que cito é ficção, mas, sem dúvida, credível, como é credível grande parte desta biografia romanceada de Cícero, e é por isso que, sinceramente, me parece boa ficção.

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  2. Caro José Carlos Alexandre,

    Vargas Llosa foi confrontado com a recusa de um convite feito a uma descendente de Gauguin (sobrinha-neta ou bisneta, que residia em Cascais, se bem me recordo) para estar presente numa recepção quando o escritor esteve em Lisboa, invocando a convidada que Llosa terá na sua novela "O Paraíso na Outra Esquina" denegrido, sem qualquer fundamento comprovado, a imagem do protagonista, considerando-se ofendida enquanto descendente do pintor.
    Llosa justificou-se invocando a liberdade criativa da ficção.

    Quanto a Cícero: Se foi eleito pelos votos caçados pelo seu populismo como pode ter ganho graças ao apoio dos aristocratas? Não há contradição?

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    1. Aparentemente, há contradição. Mas, lá voltamos nós às inevitáveis comparações com o presente, Trump caçou muitos votos com o seu populismo, mas quem é que o rodeia agora? Não são os oligarcas, os tais que ele verberou durante a campanha? Como dizia o Cícero (o romanceado), não é por acaso que os aristocratas detêm o poder durante tanto tempo: ninguém sabe como eles negociar e defender os seus próprios interesses. Como se diz no sub-título do livro de Harris: "Os Estados emergem e caem. O poder nunca muda."

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  3. "O poder nunca muda?"
    Mas Luís XVI não foi guilhotinado? Nicolau II da Rússia e a família não foram executados pelos bolcheviques?

    O poder muda de mãos, salvo quando se parte por o deixarem cair ao chão. O juntar caótico dos cacos, por ausência de poder, trás sempre consequências dramáticas para as sociedades sem rumo.

    Lamento, mas ainda não foi desta vez que me convenceu a ler o livro.
    De qualquer modo agradeço o seu esforço.
    Bom ANO NOVO!

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  4. A seguir (tradução brasileira) vem a razão de o assistente de Cícero chamar idiotas (tolos na tradução portuguesa) aos que fazem previsões de maneira tão grosseira como as que, na actualidade, são feitas na base da "leitura fria" ("cold reading").
    «(...)
    Isso eu aprendi no Campo de Marte naquele dia, quando vísceras eram inspecionadas, os céus eram esquadrinhados para se observar vôos suspeitos de pássaros, bênçãos dos deuses eram invocadas, todos os epiléticos tinham que ser retirados da área (porque, naquela época, um ataque de epilepsia, ou morbus comitialis, automaticamente invalidava os procedimentos), toda uma legião era mobilizada para o entorno de Roma de modo a prevenir um eventual ataque-surpresa, a lista de candidatos era lida, as trombetas soavam, a bandeira vermelha era hasteada no topo do monte Janículo, e o povo romano começava a dar seu voto.
    (...)»

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