sexta-feira, 18 de março de 2022

Contra dicção, da má e dita dura

Tendo vivido no estrangeiro toda a minha vida adulta, mas continuando a assumir as minhas origens lusitanas, acabo por ser uma pseudo-embaixadora de Portugal, que dá o país a conhecer a quem nunca lá pôs os pés e, se calhar, não porá. Nesta minha actividade involuntária, umas das perguntas que me fazem é o porquê de Portugal não ser parte de Espanha. Eu respondo simplòriamente que já foi--entre 1580 e 1640 estava sob a alçada dos Filipes de Espanha, mas depois disso nunca mais porque somos diferentes, resumo eu, dado que há bastante divergência entre uma paella e um arroz à valenciana, ou não fosse Espanha feminino e Portugal masculino.  

Isto veio-me à cabeça quando a Rússia decidiu continuar a sua incursão pela Ucrânia o mês passado porque um amigo meu português perguntou-me logo se os portugueses se empenhariam em se erguer contra um invasor. Não, foi a minha resposta. A forma como nos protegemos de invasores não é pela força. Quando os franceses tentaram invadir, o governo de Portugal foi para o Brasil, que tecnicamente era Portugal, e a defesa do continente ficou ao cuidado dos ingleses. No século seguinte, não é de admirar, então, que a Ditadura tenha durado tanto, que praticamente caiu de podre e, quando já se vislumbrava outra, para se defender contra os excessos do PREC chamaram-se os americanos. Mais tarde, foi a vez de se chamar os europeus: uma das razões invocadas para se aderir à CEE era mesmo proteger o país de si próprio, de forma a se manter em suposta democracia. 

No mês que vem vamos comemorar a virtude do povo lusitano em se auto-determinar contra a Ditadura que durou quase meio-século. Pelo meio, vozes que defenderão a revolução de Abril também se erguerão pela invasão de Fevereiro porque russos e ucranianos é tudo a mesma coisa, comem todos salada russa temperada com maionese e com presunto em vez de atum. Mormente, defender ditadores russos que atacam inimigos políticos em Inglaterra é tão válido como atacar ditadores portugueses que engodam inimigos políticos até Espanha para os matar. Não há contradicão, desde que uma diferente dicção indique a coisa que é má e dita dura, da que é virtuosa e deveras pura.

 

terça-feira, 15 de março de 2022

Impasse moral

Depois de quase três semanas de guerra, a Rússia não consegue dominar a Ucrânia, mas também não sai em retirada. Há duas teorias acerca de como proceder. Uma é que tem de haver uma forma de Putin sair disto sem ser humilhado perante os russos de forma a continuar no poder. Se ele suspeitar que pode perder tudo, então pode muito bem causar ainda mais estragos. A outra é que o ocidente devia juntar forças e dominar os russos até que fosse claro quem saía vitorioso e não seria a Rússia e muito menos Putin -- aliás, convinha que ele fosse despachado porque sabe-se lá o que poderá fazer na sua próxima incursão megalomaníaca.

Tudo isto é muito bem argumentado, mas a realidade tem sempre muito mais nuance do que a estratégia. Os EUA são uma potência militar, só que a história recente demonstra que ter dominância militar não só não é suficiente para dominar o adversário, como o apoio do público americano é caprichoso -- note-se que o apoio dos europeus também não é muito melhor. Ficamos então reduzidos à eterna contradição moral de que não há melhor forma de conseguir solidariedade do que imagens de destruição, feridos, e mortos: os ucranianos precisam de continuar a sofrer para que o ocidente apoie a sua causa. 

segunda-feira, 7 de março de 2022

Podia ser pior

Até agora, a única surpresa no conflito Russa-Ucrânia foi a rapidez com que a opinião pública internacional se mobilizou para apoiar a Ucrânia, não só em termos de apoio moral, mas também através de transferências criativas de fundos. Nas redes sociais, as pessoas organizaram-se para acolher os refugiados russos, ultrapassando os limites burocráticos normais. No Airbnb, pessoas de todo o mundo fazem reservas de casas na Ucrânia como forma de transferir dinheiro rapidamente para os ucranianos. As organizações não-lucrativas também mobilizaram esforços rapidamente. Por exemplo, demorou um dia para a World Central Kitchen activar os esforços na Ucrânia para alimentar refugiados. Este é, sem dúvida, o maior valor das redes sociais e da Internet e já tinha sido evidenciado aquando da retirada desastrosa dos americanos do Afeganistão.

Talvez a maior arma que existe contra Putin seja a da informação, pois o apoio do povo russo depende do enquadramento dos factos e por isso Putin não só bane as redes sociais que não controla, como o Parlamento russo modificou a legislação para contemplar penas de prisão para quem disseminar informação que contradiz a versão oficial. Esse é o seu ponto fraco e quanto mais o conflito se arrastar, mais difícil será justificar o número de mortos russos, mais a versão que os militares russos em campo dão às suas famílias directamente como a conversa de um soldado russo com a sua mãe momentos antes de morrer ou ucranianos a recolher soldados russos e a facilitarem o seu contacto com a família. Os telemóveis são uma das armas mais poderosas que existe hoje em dia.  

De acordo com um relatório de fontes europeias e americanas noticiado pelo NYT, o governo chinês pediu à Rússia que adiasse a operação na Ucrânia para depois dos Jogos Olímpicos de Inverno, mas como em 2008, a Rússia invadiu a Geórgia durante os Jogos Olímpicos de Verão, que se realizaram em Beijing, o que não agradou aos oficiais chineses, talvez nem fosse preciso um acordo explícito. A China tem mantido uma postura neutra neste conflito, mas nos últimos anos tinha havido uma aproximação entre a Rússia e a China. A economia russa é mais pequena do que a economia do Texas, logo não há grande vantagem para os chineses sacrificarem as suas relações com o ocidente para ficar ao lado da Rússia. 

Até agora os EUA seguiram uma estratégia que evitasse o conflito directo com os russos, retirando antecipadamente forças armadas americanas da Ucrânia e avisando o resto do mundo dos riscos. Se Putin quisesse humilhar os EUA, a forma mais fácil teria sido não invadir e assim os americanos teriam sido caracterizados como uns exagerados -- o tal exagero que levou a que invadissem o Iraque sob George W. Bush. Ao não entrar em conflito directo com os russos, os americanos também limitam a máquina da propaganda de Putin, pois não há fotos de americanos a atacar russos. 

Os erros passados dos americanos serviram de guia para o actual conflito: para além da invasão do Iraque, queria evitar-se uma situação parecida com a da invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, um falhanço estratégico de JFK em 1961 que levou a que a Rússia ganhasse mais influência em Cuba e tivesse mísseis nucleares apontados directamente aos EUA em 1962. Em vez disso, há décadas que a Europa e os EUA não estavam tão alinhados em termos de política internacional. 

sábado, 5 de março de 2022

Mudem de grafia

Kyiv é a capital da Ucrânia em ucraniano. Kiev é a capital da Ucrânia em russo.

Por razões óbvias, temos de eliminar a grafia do agressor.



sexta-feira, 4 de março de 2022

Em parafuso...

O mundo, neste momento, divide-se entre os que cultivam a esperança e os que se entregam à loucura. Pragmatismo e cabeça fria valem ouro, dada a sua raridade. 

Fui completamente apanhada de surpresa, ontem, quando um amigo meu me disse que tinha estado a falar com a família em Portugal a despedir-se por causa do ataque à central nuclear. Talvez a memória seja curta, mas quando tivemos a explosão em Fukushima (2011), aprendemos que os efeitos, apesar de maus, não seriam tão gravosos quanto se pensava.  

Mas e Chernobyl (1986), perguntam vocês, que até foi na Ucrânia? Esse sim, foi muito mau, mas aconteceu antes da queda do muro de Berlim, quando o que se passava na USSR ainda estava envolto em nevoeiro. Depois, por ter sido tão mau e por quem ter sofrido mais terem sido os ucranianos, sabemos que estes tomaram medidas de segurança para que a história não se voltasse a repetir.  Os ucranianos têm memória longa, já aqui falei sobre isso em 2016. Mesmo assim, o resto do mundo -- que inclui Portugal -- tem obrigação de ajudar os ucranianos com coisas mais concretas do que posts esperançosos no Instagram e Facebook.

Há um completo vazio de liderança política em Portugal, apesar de termos tido eleições um mês antes do início da invasão e da clara predilecção dos portugueses por bazucas. António Costa está MIA, como é normal sempre que as coisas vão para o torto. Marcelo preocupa-se em oferecer telefonemas de afecto ao presidente russo, o que lhe garante cobertura de primeira página. Rui Rio, que teoricamente é o líder do maior partido da oposição costuma deferir para António Costa porque, por admissão própria, é incapaz de oferecer melhor. 

Nos partidos minoritários da Esquerda portuguesa, o PCP acusa os EUA de serem a causa do problema -- quem lê o que os comunistas escrevem pensaria que foram os americanos que anexaram a Crimeia em 2014. O Bloco de Esquerda, que normalmente é a cúspide do humanismo em Portugal, absteve-se da votação ao empréstimo à Ucrânia no Parlamento Europeu. Com amigos destes, ninguém precisa de inimigos. 

Portugal que tem uma posição geográfica privilegiada entre os EUA e a Europa comporta-se como se fosse completamente irrelevante no plano estratégico mundial. Povo desnaturado, que nem em situações da maior gravidade se sabe erguer e lutar por uma causa nobre.