Recordo-me frequentemente de uma aula de Microeconomia avançada, durante o doutoramento, em que o nosso professor, um homem intelectualmente muito elegante e que gostava de análise comparativa estática, tendo até publicado um livro pequenino sobre o assunto, nos dizer uma coisa que parecia tão óbvia e, no entanto, acho tão profunda. Discutíamos o pressuposto de os agentes maximizarem o lucro e ele disse-nos que muitas vezes era impossível verificar os pressupostos directamente, mas que podíamos avaliar se estavam correctos estudando as implicações da teoria. Se as implicações do pressuposto da maximização do lucro estão ausentes da realidade, então não encontramos suporte para esse pressuposto. Isto é tão óbvio, mas tão óbvio, e, mais grave ainda, foi-me ensinado em Matemática no décimo ano, quando aprendi lógica: se A implica B, não-B implica não-A, que me sinto um bocado pateta por ter demorado tanto tempo para interiorizar o conceito e ligar os pontos, como dizia o Steve Jobs.
Conto-vos isto porque, no mês passado, a equipa do
Jimmy Kimmel Live fez um pequeno inquérito de rua a perguntar às pessoas se podiam nomear o título de um livro e depois seleccionou os que não conseguiam e fez uma pequena montagem com o intuito de mostrar o quão ignorante os americanos são. O vídeo tornou-se viral e tomei conhecimento quando o vi partilhado por uma portuguesa no Facebook, que dizia que, "ao menos, nós [portugueses] lemos". Talvez eu tenha amigos estranhos, mas os meus amigos americanos quando partilham alguma coisa deste tipo é normalmente coisas que dão uma má impressão dos americanos: coisas que os americanos fazem mal ou coisas que os estrangeiros fazem bem e com a qual os americanos deviam aprender. Os americanos têm um sentido de auto-crítica muito apurado, basta ver o sucesso de Jimmy Kimmel, Stephen Colbert, etc.
Mas não, nós não lemos todos porque a
taxa de literacia em Portugal, em 2015, era de 95,7%. No sítio onde eu cresci, todas as mulheres mais velhas do que a minha mãe eram analfabetas, mas mesmo mulheres da idade da minha mãe não sabiam ler. Uma das minhas amigas de infância, um ano mais nova do que eu, foi retirada da escola porque reprovou no sétimo ano e foi para aprendiz de cabeleireira. Não sei se ela lê, mas duvido que leia algo sofisticado. Ela até se interessava mais por maquilhagem e saltos altos desde sempre; mas ao menos sabia meter os sapatos corretamente nos pés e ajudava-me a meter os meus sapatos porque eu, aos 6 anos, ainda não sabia, nem sabia fazer os laços aos atacadores, nem sabia dizer a palavra frigorífico e ainda hoje confundo direita e esquerda. Com estas dificuldades todas, o melhor era mesmo emigrar para um país onde não se lê para ficar em boa companhia.
Há situações que se encontram nos EUA que são extremas, como
aquele professor do secundário que confessou mal saber ler e escrever; ou as histórias de
atletas das universidades americanas serem praticamente analfabetos. No entanto, devem ser contrastadas com o outro extremo: os EUA são um país onde se faz investigação de ponta e que consegue atrair as pessoas mais capazes de todo o mundo para estudar e trabalhar nas suas universidades. Algum do melhor jornalismo do mundo é feito nos EUA e os americanos compram livros suficientes para a Amazon ter tido o sucesso que tem, desde que começou com um Jeff Bezos a vender livros numa garagem.
De que vale a alguém saber ler se, ao ver um vídeo partilhado no Facebook, é incapaz de reconhecer que o vídeo foi montado de forma a dar uma ideia enviesada da situação? Não mostraram todas as entrevistas, apenas as que apoiavam a tese inicial -- é o chamado enviesamento de selecção que, por sua vez, alimenta o enviesamento de confirmação de quem vê este tipo de coisas sem sequer o questionar.
Por falar em questionar, quando eu andava no décimo-primeiro ano, na cadeira de Filosofia, de que eu não percebia nada, passámos algum tempo a estudar o Discurso do Método, de Descartes, no qual um dos conceitos fundamentais é o da dúvida, o de questionar o que vemos antes de formarmos uma opinião. Depois da barraca que foram as eleições americanas, do papel das redes sociais na propagação de notícias falsas, de sabermos recentemente das acções da Cambridge Analytica, parece que não aprendemos nada.
Há um estudo do Pew Research Center acerca dos hábitos de leitura dos americanos e os resultados indicam que um americano médio lê cerca de 12 livros por ano e que esta média se tem mantido estável desde 2012. Um outro estudo do National Endowment for the Arts, que começou a recolher dados há mais de 30 anos, mostra que os americanos estão menos interessados em literatura (ficção, peças de teatro, e poesia) do que antes. Note-se que não-ficção não é considerada literatura pelo NEA, logo não contariam espólios de cartas, diários, biografias, ensaios, etc. Adeus Anais Nïn, Joan Didion, diários de Miguel Torga, ensaios biográficos do Pedro Mexia... Não leio nada de jeito, está visto!
Se eu fosse interpelada numa rua e me pedissem um título de um livro, não sei se teria uma resposta inteligente. Não sou uma leitora voraz porque leio muito lentamente, aliás, sou lenta em quase tudo. Um dos meus colegas de trabalho disse-me esta semana que eu presto muita atenção a detalhes: concentro-me nas árvores e esqueço-me da floresta. Ah, podia tentar lembrar-me do título "Na Floresta"...