quarta-feira, 27 de julho de 2022

Já não é plano

Há uns anos, o Thomas Friedman escrevia que o mundo era plano, que o comércio internacional aproximava as nações e derrubava barreiras. Com a pandemia, o que era plano é agora cheio de obstáculos, que dificultam o movimento de mercadorias. As cadeias de distribuição, que estavam construídas para um mundo com poucas barreiras estão a ser reconstruídas de forma a haver mais redundância. As empresas querem localizar as suas operações mais perto dos clientes e querem minimizar o risco político. 

Para além das empresas que saíram da Rússia por causa da má publicidade e também das sanções, o capital parece estar também a fugir da China. Por um lado, a política de zero-casos Covid seguida pela China aumenta o risco de interrupções na produção; por outro, há quem se questione se a China não poderá invadir a Ilha Formosa, numa acção que teria consequências semelhantes às que assistimos após a invasão da Ucrânia. 

Quem se queixava dos aspectos negativos do comércio internacional deve congratular-se, pois vai poder observar o que é um mundo menos integrado, que é como quem diz, um mundo de preços mais altos. Se a Europa já empobrecia quando as coisas corriam bem, há a possibilidade real de que poderá empobrecer ainda mais. A Alemanha estava construída para crescer à custa da energia barata da Rússia, da protecção militar dos EUA, e de taxas de juro baixas. Podia beneficiar do euro mais barato, mas com energia cara, isso não a ajuda.

Mas, não é tudo mau, pode ser que as coisas corram bem, pois isto é também uma oportunidade de reavaliar o projecto europeu e de o orientar para ser sustentável. É pena que Portugal seja tão pessimamente governado porque isto podia fazer toda a diferença para gerar crescimento para o país. O mais provável é que empobreça mais depressa.


quinta-feira, 21 de julho de 2022

Reabertura

Hoje, Quinta-feira, o gasoduto Nord Stream 1 vai reabrir, mas com capacidade reduzida. A Rússia diz que está com problemas para enviar gás à Europa porque umas das turbinas que foi para o Canadá para ser reparada não regressou devido às sanções contra a Rússia -- é essa a justificação da redução da capacidade, mas é duvidoso. Se a capacidade fosse a do costume, os europeus iriam tentar armazenar algum produto para o inverno o que diminuiria a margem de manobra da Rússia. O certo é que a Rússia já tinha reduzido a capacidade antes, logo apenas envia alguma coisa para continuar a ter influência.

Os EUA também estão limitados na exportação porque houve um fogo em 8 de Junho em Freeport, no Texas, num terminal de liquidificação de gás natural, o que reduziu a capacidade de exportação dos EUA em 17%. Inicialmente, pensava-se que levaria uns três meses para que o terminal voltasse a entrar em actividade, mas a Energy Information Administration dos EUA indicou num relatório desta semana que só para 2023 é que a capacidade regressará ao normal. Os dados de exportações de Junho dos EUA saem em Agosto, altura em que saberemos qual o impacto do fogo no comércio internacional, mas, este ano, cerca de dois terços dos envios de Freeport eram destinados à Europa. 

Em 2022, a Europa é o principal importador de gás natural americano e Portugal tem importado bastante, o que é o mais cauteloso. Perante a conjuntura actual, é preferível ter a mais do que ter falta. Mas esperemos que, quando chegar o inverno, os portugueses tenham dinheiro para pagar a conta do gás.  

sábado, 16 de julho de 2022

Um propagandista na América

Um tal de Manuel Cardoso escreveu no SAPO24 que  está nos EUA há dois meses e acha-se surpreendido que tenha perdido uns quilos, culpando a má qualidade da comida americana e o euro que está a depreciar contra o dólar americano. Não entendi a necessidade de vir aos EUA para se descobrir o estereótipo criado pelos próprios americanos de que se come mal neste país. Depois não é verdade. Os EUA têm óptimos restaurantes e oferecem uma grande variedade de comida e até de preços. Só que os preços americanos mesmo no restaurante mais baratuxo irão ser caros para muitos portugueses. 

Muitos americanos não sabem cozinhar e comem fora, logo há muitos restaurantes que fornecem calorias baratas e cuja cozinha ainda é inspirada num país que já não existe. A ironia é que é mais fácil encontrar um pobre nos EUA que não sabe cozinhar, logo tem de comer fora, ou come refeições pré-cozinhadas, do que os mais ricos que, muitas vezes, cozinham em casa e comem fora por prazer, não por necessidade. Em Portugal, os mais abastados têm uma empregada doméstica que lhes prepara algumas das refeições, um conceito que, nos EUA, é quase inexistente. 

Na sua criação, os EUA eram um país rural, muito mais do que a Europa Ocidental, e muitas pessoas tinham trabalhos que requeriam muitas calorias, logo a cozinha tradicional americana é muito rica em hidratos de carbono. Depois, há grande diversidade climatérica nos EUA, mas a maior parte do território americano não permite que as pessoas mantenham um quintal todo o ano onde produzir parte dos seus alimentos, coisa que em Portugal é normal. A minha mãe fazia sopa o ano inteiro com as couves do nosso jardim e desde a primavera ao outono havia sempre algo a crescer para consumo. O clima americano, que é bastante seco durante o inverno, é mais propício a que se armazenem cereais. 

Mesmo assim, as minhas relações americanas (estou a falar de pessoas com bem mais de 70 anos) contam-me que, quando eram pequenas, as suas mães tinham uma pequena exploração agrícola onde cultivavam vegetais que depois guardavam em forma de pickles para o inverno. Uma amiga minha que tem 93 anos e que cresceu em Sweetwater, TX, conta que para além de fazer os pickles, a família tinha uma vaca que lhes permitia ter leite, manteiga, queijo, sour cream, etc. Tudo feito pela mãe dela em casa. Como viviam perto de um caminho de ferro, era comum a mãe deixar farnéis de comida perto da linha de comboio para as pessoas pobres que apanhavam "boleias" nos vagões de mercadorias.

A minha ex-sogra cozinhava pratos que usava muitos enlatados, as chamadas "casseroles", que são pratos de uma altura em que a comida já era mais industrializada.  Ela, que tem 80 anos e cresceu numa zona rural em Oklahoma, não gosta de feijão-verde fresco, apenas aprecia o enlatado, que a mim não me dizia grande coisa porque eu cresci a comer feijão-verde fresco. Já a minha "mãe-americana", uma amiga minha desde 2004, septuagenária, que nasceu e cresceu nas montanhas do Arkansas, as Ozarks, que têm um clima mais ameno, fala bastante dos pickles de cenoura, feijão-verde, etc. que a mãe fazia, mas ela adora feijão-verde fresco e, hoje em dia, durante o verão faz compras no Farmer's Market de Fayetteville, que é um dos melhores mercados de agricultores dos EUA. 

Nunca comi rúcula tão saborosa como a que lá vendem em Fayetteville. E as misturas de saladas muito fragrantes, com verduras muito tenras, e às vezes com algumas flores comestíveis. Um dia destes tenho de ir lá a um Sábado de manhã (fica a 5, 5 horas de onde estou, logo tenho de sair na Sexta-feira), só para comprar as verduras. Apesar disso, a minha salada preferida continua a ser a alface que a minha avó me preparava há mais de 40 anos e que vinha do nosso quintal. A minha mini-horta tinha sempre alface e salsa das sementes que a minha avó me dava. E, no inverno, ela fazia-me sopas fervidas, que era um resto de uma sopa rica com feijão, couve e cenoura, à qual se juntava broa-de-milho aos pedaços e se fervia. 

Mas de regresso aos restaurantes americanos. Hoje em dia come-se excepcionalmente bem nos EUA e outra coisa que aqui fazem muito bem é que o normal é haver pratos que lidem com as restrições alimentares dos clientes, por exemplo, vou a um restaurante e peço que me indiquem quais os pratos sem glúten, muitas vezes até há um menu específico para esses casos. Mesmo nos restaurantes mais baratos, há sempre pratos de saladas aos quais se pode adicionar bife, frango, ou salmão, e fica uma refeição completa. Quando a minha prima holandesa veio aos EUA em 2003 ficou encantada com as saladas do MacDonald's que, entretanto, foram ao ar com a pandemia.

Quanto ao Manuel Cardoso, que veio a um país 107 vezes maior que Portugal, com uma população que tem mais de 32 vezes a portuguesa e bastante mais diversa, e acha que a cozinha americana se resume ao Fast Food. Nem lhe ocorreu fazer uma busca no Google para encontrar um dos 200 restaurantes com estrelas Michelin que existem nos EUA, mas não tem dinheiro para isso, claro está. Também podia ir ao OpenTable para ver que restaurantes perto dele estavam a aceitar reservas e até dava para ver as fotos dos pratos e ver quanto custavam porque dá acesso ao menu. 

Enfim, parece-me que esta pessoa é uma propagandista à bela moda dos tempos da ditadura: Portugal é o paraíso, o estrangeiro ainda não encontrou o caminho da salvação.