Quando cozinho, costumo preparar muita comida. Talvez o suficiente para uma família de quatro, que era o tamanho da minha família portuguesa, com direito a um bocadinho de sobras. Como há sempre frigorífico e congelador, nunca reduzi as doses. Em vez disso, quando é mesmo muito, arranjo bocas para comer. Em Memphis, uma das senhoras que trabalhava na minha equipa já tinha mais de 60 anos, vivia sozinha, não gostava de cozinhar, e não se achava boa cozinheira. Regularmente, eu dava-lhe comida para ela variar o cardápio. Aqui em Houston, talvez uma vez por semana, em média, entrego umas duas ou três refeições à minha vizinha J. que tem 92 anos e vive sozinha.
Hoje, à hora do almoço, passei por casa dela para lhe entregar um pseudo-caldo verde, uma feijoada, e batatas assadas no forno com dois tipos de carne com que as servir. A feijoada devia ter sido entregue a semana passada, mas eu não orientei bem o meu horário de trabalho para estar em casa a horas decentes para ter tempo de a ir ver à noite. Acabei por congelar grande parte do que fiz e não a quis entregar assim. A J. disse-me hoje que gosta muito da comida que eu faço e perguntou-me quem é que me tinha ensinado a cozinhar. Foi a minha mãe, claro.
O primeiro prato que aprendi a cozinhar foi arroz branco. Parece ser fácil, mas frequentemente me esquecia de pôr sal ou não acertava na água, e ficava muito mal. Uma real porcaria era o que era, mas a minha mãe dizia que, na próxima, sairia melhor e ria-se divertida com os meus desastres. E lá foi indo até ficar bom. Depois ensinou-me a refogar, estufar, etc.
A minha mãe gostava muito de boa comida, sabia cozinhar muito bem, mas não gostava de cozinhar. Às vezes, via uma receita e chegava ao pé de mim e dizia, com uma voz muito cativante e uns risinhos envergonhados, que parecia ser tão bom, será que eu a conseguiria fazer... Era um belo engodo para quem gosta de desafios. Lá caía eu que nem uma pata choca nas artimanhas dela. Lembro-me de uma vez eu acabar a estufar um peru para a ceia de Natal que era tão grande e pesado que eu quase não conseguia levantar o tabuleiro.
Quando a J. me viu à porta, pediu-me para entrar e ficar um bocadinho. Dirigi-me à cozinha e sentámo-nos. Disse-me que estava a fazer a lista de filmes que queria ver, para encomendar no Netflix pelo computador. Depois explicou-me como ela seleccionava os filmes: lia a revista The New Yorker e via o que era mostrado em festivais de cinema. Disse-me que queria ver "Arabian Nights", mas não sabia se o Netflix teria.
Começou a contar a história do filme e mencionou que era de um tal Gomes e a acção tinha a ver com Portugal. Era "As Mil e Uma Noites" do Miguel Gomes. A J. questionava-se se o filme teria sido filmado em Portugal. E leu outra vez a The New Yorker, desta vez em voz alta para mim, ao mesmo tempo que me mostrava a revista. Concluiu que, de certeza absoluta, era. E notava-se que ficou encantada com a perspectiva de ver um filme filmado em Portugal.