sábado, 28 de novembro de 2015

A minha amiga é negra

Ferreira Fernandes no DN de hoje.

A minha amiga é negra. Ainda há pouco eu não me lembraria de o dizer. Nesta semana, ela obrigou-me. Claro, não foi do género "olha, escreve lá no teu jornal que sou negra". Foi assim, ela estava a fazer uma coisa solene e ficou de cara levantada - dizia uma jura pública - olhando-nos, olhos nos olhos, a mim e a vocês também. Eu disse-me: está bem, Francisca, eu digo.
Ao João, seu irmão, ele morreu há dois anos, eu até já chamei "preto". Ele, o mais cosmopolita dos meus amigos, apareceu-me com uns sapatos a que os americanos chamam spectators. E chamam bem, porque, de couro negro ou castanho e pala branca, os spectators atraem a atenção e só ficam bem a quem os ousa usar. Invejo-os, porque me sei disléxico de alfaiataria. Foi o que talvez me tenha levado a dizer ao João: "Pareces um preto de Nova Orleães..." Ele gostou, olhou para os sapatos e pôs-me a mão no ombro: "São bonitos, não são?" Acho que se permitiu a superioridade, a mão no ombro, porque se aproveitou da minha nítida desvantagem no vestir. Geralmente os irmãos Van Dunem tratam-me com menos sobranceria. Nem tanto por mim, suspeito, mas porque eu fui "o amigo do Zé", o mais velho dos irmãos.

Eu e o José, jovens, íamos levar doces aos presos nacionalistas, 1968, 1969... Os guardas faziam diferença entre o branco e o preto, desprezavam este e insultavam aquele. Nós regressávamos ao nosso bairro com aquela noção de irmanados que os amigos só criam na infância ou na adolescência. O ter de ser cumprido, a nossa areia vermelha aos pés, o futuro ali à mão, e nem orgulhosos íamos, só juntos. Mas não era bem assim. O nosso risco era igual - e estávamos de peito feito - mas o risco dos nossos não era igual. Em casa dele tinha ficado a dona Antónia, a mãe do Zé, ela é que fazia os bolos e nos mandava entregar. Ela sabia o risco do seu menino e do amigo. Eu partiria para o exílio pouco depois e o Zé seria preso no campo de São Nicolau. Ela não sabia ainda é que a espiral acabaria trágica, que o filho seria assassinado, já pés firmes sobre a praia sonhada, em 1977.

A dona Antónia vive em Lisboa, tem 93 anos. Ah, com ela eu nunca me permitiria a palavra "negra", nem agora, quando a palavra foi conquistada pela Francisca. Não que a ofendesse, claro. Ela era, assumia e praticava aquilo que era na nossa cidade - negra, o que não era mera circunstância, era condição. Mas para mim a dona Antónia é a senhora, ponto. Às vezes, agora, em Lisboa, quando ia recordar com o João ou falar com a Francisca, eu puxava pelo antigamente dela. Eu deixava ir a conversa, como a dona Antónia a faz, com silêncios, olhos tristes e boca amarga, mas estava sempre a vê-la a entregar-nos o embrulho dos bolos para levarmos à prisão.

O pai da família foi sempre sóbrio comigo. Mateus van Dunem passava na rua com o irmão, ambos silenciosos, ambos elegantes, vestidos à funcionário, com gravata, o que era raro no bairro. Eles eram filhos duma derrota - negros luandenses dos anos 1940, 50 e 60. Eu explico o que lhes aconteceu: a República. A República burra, como tantas vezes acontece às coisas boas em Portugal. O alto-comissário Norton de Matos decidiu um erro: substituir a elite angolana, os filhos da terra, os nativistas, os angolenses, por gente ida de Portugal. Não percebeu que o que havia para perpetuar de Portugal em Angola era a gente com quem Portugal se tinha cruzado.

Nas décadas de 1910 e 20, Manuel Pereira dos Santos van Dunem, o pai dos dois irmãos que eu veria juntos tantos anos depois, o avô de Francisca, foi perseguido, preso e desapossado dos bens. Aconteceu o mesmo a outros dirigentes das associações, como a Liga Angolana, encerrada. O jornal dele, O Angolense, foi fechado, tal como a sua tipografia Mamã Tita. Aos filhos de toda essa geração esperariam quase só lugares subalternos de funcionários. Abandonavam as casas tradicionais da Cidade Alta e Ingombotas e foram, afastando-se para os bairros periféricos, como o nosso bairro, o meu e do Zé, São Paulo.

A minha amiga chegou jovem a Portugal, a sua universidade foi a de Lisboa, casou com um açoriano, pariu um português, trabalhou em Portugal, tornou-se portuguesa e continuou negra. Nos anos 1930, a geração do avô de Francisca pagou para que se erigisse um monumento, em Luanda, a Luís Lopes de Sequeira, o crioulo. No século XVII, esse mulato derrotou os reinos de então, numa Angola que não existia. Lopes de Sequeira, cabo-de-guerra, servia Portugal e acabou por fazer Angola, porque sem ele provavelmente ela não o seria. A história capricha nos seus caminhos e da importância destes dirá o que vier.

Ah, agora compreendo... O olhar de Francisca não queria que eu dissesse que ela era negra, mas que contasse tudo isto.

1 comentário:

  1. Luís,

    A mim chateia-me o "racismo forçado" - seja o directo, seja o indirecto. E é, no meu entender, mais racista um título de jornal a dizer que Portugal tem uma Ministra negra do que tipo qualquer a chamar a atenção para um terceiro e dizer "ali o preto". É que no primeiro caso, condensa-se a identidade de uma pessoa numa característica secundária (ser vice-procuradora geral é relevante, ser negra não o é), enquanto no segundo usa-se uma característica distintiva para identificar alguém.

    Quanto ao negro/preto, nunca percebi a origem do mau/bom dos termos, mais ainda quando em "americano" a distinção é a inversa. Eu, como sou do Norte, negras sãos as nódoas, a cor é preto. E não vejo problema em dizer que alguém é "preto", a não ser que ser preto seja classificação generalista ("todos os pretos são estúpidos"). Mas, se assim for, qual é a diferença para chamar negro?

    Finalmente, e em relação a Angola, a maioria das pessoas fazia bem em estudar a nossa história ultramarina (aí está - outro termo carregado. Ultramarina porque colonial seria somente de meados do Séc. XIX para a frente, se excluirmos o Brasil) e (re)descobrir o Reino do Congo e os seus tributários.

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