Reencontro-me a arrumar a biblioteca que recebi do meu pai. Não tinha acabado na tentativa anterior, porque não tinha paredes suficientes para tantas estantes de que precisava. Vai daí, optei por uma solução radical, dividir uma divisão grande em duas recorrendo a estantes feitas à medida que fazem de parede divisória. Livros de um lado e do outro.
E lá estou eu de volta às memórias que alguns livros me trazem. Entre as dezenas ou centenas de livros que hoje passaram pela minha mão, estava a “Filha do Labão” de Tomás da Fonseca. Abro o livro e percebo que o meu pai o leu, e usou, enquanto combatia na Guerra da Guiné.
Com certeza que à falta de um caderninho de apontamentos, o meu pai recorreu à primeira folha do livro, que estava em branco, para escrever a primeira versão de um poema. O Barco da Esperança
Assisti a este método algumas vezes: vinha-lhe um poema à cabeça e tinha logo de tomar nota. Faltava-lhe confiança na memória. Muitas vezes o vi fazer isso em guardanapos nos cafés, ou em toalhas de mesa de papel.
Aquela versão de 6 de agosto de 1965, em Bissau, terá sido a primeira versão. Tem algumas emendas e acaba por ser razoavelmente diferente do poema que acabou por ser publicado, já mais depurado e trabalhado, e que reproduzo a seguir.
A primeira vez que tive consciência deste seu processo mental foi numas férias na Praia de Mira. Passeávamos à beira mar, com o meu pai bastante calado, muitas vezes parecendo contar pelos dedos. Contava as sílabas métricas dos versos dos poemas que ia fazendo. Quando alcançava um resultado digno de impressão, perguntava-me se queria um gelado e íamos ao café mais próximo comprá-lo, onde pedia por uma esferográfica e uma folha de papel, às vezes, o tal guardanapo, para anotar a sua criação.