quarta-feira, 31 de agosto de 2016

As claques e a diabolização do adversário (I)

Não sendo um fenómeno português, nem sendo uma coisa recente, é hoje claro para todos que o discurso político no espaço público é fundamentalmente um conjunto de variações sobre a diabolização do adversário, para deleite das claques dos partidos. Esse fenómeno aumenta exponencialmente nas redes sociais, onde predomina o ódio e o insulto em detrimento de qualquer debate racional. O “meu” partido faz tudo bem, o seu líder é um poço de virtudes, o “outro” partido faz tudo mal, o líder dos “outros” só tem defeitos. Os líderes partidários dedicam uma parte muito substancial das suas intervenções públicas ao puro insulto, onde o adversário é apresentado como um anti-Cristo, apelando ao ruído que pavlovianamente tem os pompons sempre prontos a usar. Sendo certo que algo disto sempre houve, hoje praticamente só há isto. Começa a ser complicado lembrar um debate sério em Portugal nos últimos anos.

A direita dirá que a culpa é de Sócrates e de Costa e da sua gerigonça; a esquerda dirá que foi a direita radical de Passos e do Observador quem criou a crispação. Mas, na verdade, penso que há raízes profundas e lógicas para que o debate político seja cada vez mais um concurso de beleza encenado para as claques, onde predomina essa diabolização do adversário, em detrimento de ideias, modelos e programas. Do meu ponto de vista, as razões para isto estão aliás associadas ao progressivo desaparecimento do centro político ao longo dos últimos 20 anos.

Num conjunto de posts irei explorar algumas destas razões. Hoje quero começar pela abstenção. Da abstenção falam-se naqueles tempos mortos das noites eleitorais, antes de sairem as sondagens ao pé da urna (com o Pedro Magalhães a explicar calmamente que são só sondagens, mas os partidos e os comentadores entram logo em puro frenesim). Todos lamentam a crescente abstenção, mas obviamente ninguém quer saber do assunto; por alguma razão seremos dos países da UE15 onde basicamente tudo o que se relacione com eleições está na mesma há 40 anos. Mas se a política portuguesa não quer saber da abstenção, a abstenção, sim, tem vindo a mudar a política portuguesa.

Umas contas simples com números redondos e sem uma metodologia rigorosa. Se olharmos os resultados das últimas sete eleições legislativas, desde 1995, podemos razoavelmente dizer que o eleitorado fiel (isto é, eleitores que votam sempre no mesmo partido, independentemente das lideranças, propostas, conjunturas, etc. e do qual fazem parte as claques) está assim distribuído de forma muito genérica: PSD/CDS com 2,1 milhões; PS/BE com 1,9 milhões e o PC com 400 mil votos. Um total de 4,4 milhões de votos. A isto haveria que somar os fiéis dos outros partidos, do voto branco e do voto nulo. Temos assim uns 4,6 ou 4,7 milhões de votos, mais coisa, menos coisa.

Para ganhar as eleições e ter uma maioria governativa, os partidos têm que atrair o eleitorado que sobra. Vejamos o que aconteceu entre 1995 e 2015:


Conclusão: o eleitorado infiel está a desaparecer, quase metade deixou de votar em vinte anos. Ainda levará tempo para ser extinto; a este ritmo, outros vinte e tantos anos. Mas a tendência parece-me clara e acredito que pode inclusivamente acelerar-se esta erosão com o aprofundamento da estagnação económica.

Se o eleitorado volúvel e infiel é cada vez menos importante porque fica em casa e não vota (por exemplo, os dados dos estudos publicados por gente que faz trabalho sério no ICS permitem-nos especular que abaixo dos 30 já só vota o eleitor jovem fiel), os partidos têm cada vez mais que mobilizar o seu eleitorado fiel. A abstenção condiciona a concorrência dos partidos. Cada vez trata-se menos de convencer os eleitores infiéis, mas mais assegurar que os fiéis aparecem nas urnas. Daí que a abstenção tenha ajudado muito neste processo: o discurso das promessas e das políticas (que visava os infiéis) deu claro lugar ao discurso do diabo-que-mora-no-outro-lado (que tanto apaixona os fiéis e anima as claques).

Mas a abstenção foi ajudada por outros factores... Fica para o próximo post falar desses outros fatores!

Coisas esdrúxulas 92

 É cheia de peripécias a vida do pícaro.

Wincing at the Beautiful

No Domingo, o poema do Writer's Almanac foi muito giro e até falava de Rilke, de quem eu gosto muito...

Wincing at the Beautiful
by Paul Hostovsky

So my friend Phil is telling me how
he can’t get a date
how he loves women and how
they’re always giving him looks
so I ask him what kind of looks
so he winces at the beautiful
braless young woman passing by
at that particular propitious moment
giving her a look of such
longing and longevity
that she returns his look with a look
that kills his entire family tree
from the roots to the unimagined
blossoms of the great grandchildren shriveling
on his shriveling bough
and I think I’ve diagnosed his problem now
and I think of quoting some lines from Rilke
but on second thought I think
a sports metaphor might serve him better
so I steer the conversation round to basketball
and the three second rule
which says you can only stand inside
the key for three seconds
before they blow the whistle
they’re just blowing the whistle on you Phil
for breaking the three second rule
for standing there with your eyes
popping out like basketballs
it’s a game like any other I tell him
then I ask him if he wants to score
and now that I have his attention
I throw in those lines from Rilke
I tell him that beauty is nothing
but the beginning of terror
we’re still just able to bear
and the reason we adore it so
is that it serenely disdains to destroy us
and he winces again and this time
it’s at the beauty of those lines
or maybe their truth which hits him
like a three-pointer now
that Rilke hits all the way from Germany
at a distance of a hundred years

“Wincing at the Beautiful” by Paul Hostovsky from Bending the Notes. © Main Street Rag, 2008.

Corrupção

Como o meu carro esteve no médico hoje, trabalhei em casa. Ao fim da tarde, pedi boleia à J. para me levar à garagem buscá-lo. Quando cheguei a casa dela, pediu-me para imaginar o que lhe tinha acontecido. Não fazia ideia. Tinha sido o filho da nossa antiga vizinha, a A., que foi para o alojamento de terceira-idade assistido, que lhe tinha telefonado a perguntar se lhe podia ser de assistência. A J. não fazia ideia do porquê da oferta e ele explicou: tinha visto alguém a entregar-lhe comida um dia, quando foi tirar fotos à casa antiga, que está prestes a ser demolida, e presumiu que estivesse doente. Adivinhem quem era o alguém... Rimo-nos as duas. Antes que ela terminasse a história, quando soube quem tinha telefonado, interrompi-a -- interromper os outros é um dos meus piores vícios -- e tentei adivinhar o resto. Pensei que ele tivesse perguntado se ela precisava de alguma coisa por causa das nespereiras.

Numa das minhas visitas anteriores, tinha confidenciado à J. que, sempre que passava em frente da casa, apetecia-me roubar umas nespereiras que tinham nascido no canteiro porque ninguém apanhava a fruta caída no chão. (Acho que a primeira vez que fui feliz em Houston, na minha vizinhança, foi quando quase bati com a cara numa nespereira, enquanto passeava os cães.) Só que ainda não tinha encontrado vontade de cometer o crime. Aliás, será que seria mesmo crime, dado que os donos novos vão demolir aquilo tudo. A nespereira vai ser morta. E cada vez que eu lá passo à noite, ouço os sapos a cantar no meio da vegetação, e cai-me o coração aos pés -- aqueles sapos vão morrer todos e, se calhar, alguns dos meus bebés sapinhos também lá estão. Pronto, já estou a chorar por causa dos meus sapinhos. Ser avó de sapos é muito duro emocionalmente...

Na sexta-feira passada, quando cheguei do trabalho, a J. telefonou a perguntar se eu estava em casa. Estava, era o fim-de-semana de o Alf e o Chops irem para o pai e estava a prepará-los porque já eram quase 18 horas. Ela disse que ia passar rapidinho em minha casa para me entregar algo, porque o jogo estava quase a começar e não podia demorar muito. Pensei que fosse os pyrexes da comida que eu lhe levo, mas quando chegou trouxe-me o cestinho onde eu lhe tinha dado um pêssego e um tomate dos que a minha chefinha me tinha trazido do Farmer's Market de Fayetteville, AR, um bocado de pesto de coentros que ela tinha feito, e várias nespereiras bebés, que ela tinha ido apanhar para eu plantar. É como se um pedacinho do jardim da A. tivesse vindo para minha casa.

Quando ela começou a contar a história do filho da A. telefonar, pensei que ele a tivesse visto ir às nespereiras, mas ela garantiu-me que não havia ninguém na rua que a tivesse visto. Há quem corrompa a juventude; eu corrompo senhoras nonagenárias...

terça-feira, 30 de agosto de 2016

A República vai de “burquíni”

 Conselho de Estado francês desempenha, no ordenamento jurídico daquele país, funções consultivas em matéria legiferante e é dotado de competências decisórias em sede de Direito Administrativo, próximas das entre nós acometidas ao Supremo Tribunal Administrativo. Para além de garantir a legalidade, em último recurso, das decisões da Administração Pública, o prestígio dos magistrados que o integram torna o Conseil d’État um baluarte do Estado de Direito.
A recente decisão de 26/8, próxima das nossas providências cautelares, em que se visava a suspensão da eficácia do acto administrativo do maire de Villeneuve-Loubet, o qual havia aprovado uma ordonnance de 22/8/2016 na qual se lê que: “(…) o acesso ao banho fica interdito, de 15/6 a 15/9 inclusive, a quem não disponha de roupa correcta, respeitadora dos bons costumes e do princípio da laicidade (…) O uso de roupa, durante o banho, que tenha conotação contrária a estes princípios é estritamente proibido (…)”, é assinalável a vários títulos. Trata-se, contudo, de uma decisão provisória, reconhecido que foi que a manutenção em vigor da ordonnance atentava contra direitos fundamentais, sendo necessário interpor acção principal que declarará ou não a sua ilegalidade, pelo que a questão não se acha encerrada.
Antes de mais, ao invés do que infelizmente sucede amiúde entre nós, aquele órgão demonstra que não é preciso escrever muito para ir ao busílis da questão. O aresto reconheceu que as restrições em causa devem ser “adaptadas, necessárias e proporcionadas às exigências únicas de ordem pública”. Na argumentação do Conselho, aquele regulamento administrativo “comporta uma violação grave e manifestamente ilegal às liberdades fundamentais que constituem a liberdade de ir e vir, a liberdade de consciência e a liberdade pessoal”. O órgão alude expressamente à onda de atentados terroristas em solo francês, com particular destaque para Nice, mas é muito claro ao defender que os instrumentos do rule of law não podem ser similares aos dos terroristas. Não se vislumbra, na sua opinião, qualquer razão de segurança pública ou de perturbação da ordem, como vinha sustentado pelo Presidente de Câmara. Apenas esse motivo poderia, na ponderação dos interesses em presença, conduzir a uma limitação de direitos fundamentais como o de poder vestir-se e apresentar-se em público como se deseja, ponto é que tal não afecte a liberdade e autodeterminação sexuais de terceiros.
Importante é a referência à liberdade de culto e de religião na decisão do Conseil d’État, uma vez que o modo como alguém se veste é uma imanação desse direito de primeira geração. Sabemos que a questão não é pacífica em vários países, mas sobretudo em França, onde a “burkha” foi proibida em espaços públicos e lugares da Administração, a coberto de motivos de segurança. Se esta restrição pode encontrar guarida numa certa interpretação do princípio da proporcionalidade, o uso do chamado “burquíni” não, bastando para o efeito, como o têm posto a nu as redes sociais, compará-lo com alguns fatos de natação de conhecidas marcas comerciais.
A França tem sido pouco prudente nestes domínios. As proibições deste tipo devem estar solidamente ancoradas para não parecerem um ataque gratuito a uma dada confissão religiosa. Por outro lado, o Estado republicano e laico convive e respeita as várias manifestações de um credo, regulando-as em medida estritamente necessária, só podendo impedir certas manifestações quando outros direitos fundamentais estejam em risco de lesão.
Desde o conhecido “caso dos crucifixos” na Alemanha, o qual chegou ao Tribunal Constitucional daquele país, discutindo-se até que ponto um Estado laico deve ou não aceitar a existência de sinais religiosos em lugares públicos, até ao referendo suíço que proibiu a construção de minaretes, a Europa vai dando sinais de não ter integrado a destrinça entre um Estado laico e um que respeita as manifestações de religiosidade que não bolem com princípios fundamentais. Tal constitui um jogo muito perigoso no quadro dos actuais extremismos, não apenas de origem muçulmana, mas também de nacionalismos explosivos de partidos de direita.
O republicanismo, seja ele francês ou de qualquer outra latitude, na sua essência, exige e respeita a diferença e é pragmático. Lançar gasolina para uma fogueira que já não arde em lume brando, mas em chamas vistosas, não é, por certo, o caminho. O busto da República aguenta bem um “burquíni” e não é por isso que os ideais que corporiza são postos em causa.



Floricultura 37



Crescem muito amarelinhas por entre as pedras do macadame, mas os da Câmara andam sempre a arrancá-las.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Três votos contra

Na última ronda de votações para Secretário Geral da ONU, Guterres teve 3 votos contra. 3 em 15, sendo que há 5 países com poder de veto.

O que eu vou dizer é pura especulação, dado que as votações são secretas. Admitindo que a distribuição de votos é uniforme, então a probabilidade de que pelo menos 1 dos 3 votos negativos seja de um dos 5 membros com poder de veto é de 73,6%. Assim, independentemente de qualquer preferência, eu diria que isto não parece estar a correr bem para Guterres.

Adenda
Fazendo as contas para o segundo classificado, que teve 5 votos contra, concluímos que a probabilidade de pelo menos um dos votos vir do P-5 é de 91%. Ou seja, se eu tivesse de apostar, diria que ou o vencedor é o Guterres ou um outro candidato ainda não declarado.

Ser turista é difícil...

O Observador tem uma peça sobre turismo. Como eu sou turista, gostaria de dar a minha impressão -- outra vez... Eu acho Portugal barato, há coisas que eu acho caras, mas no geral é um sítio barato. Mesmo sendo barato, não me importo de pagar mais, se a coisa me agrada, e até deixo boas gorjetas -- já sei que é mau. Mas depois vêm os portugueses queixarem-se de que eu e pessoas como eu estragamos o país. Se os turistas pagam bem, dizem-me que se corre o risco de os recintos tratarem bem os turistas e tratarem mal os nacionais. E faz sentido porque qualidade e preço devem ser positivamente correlacionadas.

Mesmo nos EUA, se eu for a um sítio caro, espero ser tratada muito bem. Se é para me tratarem mal, vou a um sítio barato. Nos EUA, qualquer empregado de um sítio mediano tem autoridade suficiente para dar um desconto ao patrono ou uma oferta da casa se o serviço não for em condições. Se estamos num restaurante e a comida se atrasa, se o empregado se engana, se despeja água para cima de nós, etc., o normal é pedir desculpa imediatamente e oferecer-se para compensar a pessoa. Já me aconteceu ter ofertas da casa que eu até nem achava justificadas, mas o empregado insiste que a comida devia ter chegado há mais tempo e que é completamente injustificável o atraso... É também muito comum ver-se o gerente a andar de um lado para o outro a certificar-se de que tudo está bem.

Dá-me a impressão que, em Portugal, os locais querem ser tratados muito bem em todo o lado, mas querem pagar pouco o que faz sentido porque também ganham pouco, mas dizem que querem que os turistas paguem mais. Ora, se os estabelecimentos fazem preços para os turistas, os locais queixam-se de que os preços são caros demais e estão a ser discriminados. Se os estabelecimentos fazem preços para os locais, então os turistas gastam pouco e são acusados de escolher o mais barato.

Ó pessoas, decidam-se! Quem precisa de dinheiro são vocês. Os turistas têm muitos sítios onde o gastar, não é necessário ir para Portugal incomodar-vos...

Visto daqui

Na NPR, na sexta-feira, a inventora do burkini foi entrevistada e dizia que tinha inventado a peça porque lhe apetecia ir nadar, mas queria preservar a sua modéstia. As primeiras clientes do burkini não foram mulheres muçulmanas, foram mulheres ocidentais que precisavam de se proteger do sol forte da Austrália; demorou bastante tempo até o burkini penetrar no mercado muçulmano.

Há dois dias, no The New York Times, um artigo foi publicado com o título "From Bikinis to Burkinis: Regulating what Women Wear". Uma foto a preto e branco mostra uma mulher em bikini a ser multada por um polícia francês em 1957. O ponto de vista do artigo é o de que os homens têm a mania de controlar o que é aceitável no corpo de uma mulher. Por exemplo, é mencionado que nos anos 80, as empresas americanas ainda tinham códigos de roupa extensos para as mulheres e curtos para os homens -- mesmo nas empresas onde trabalhei havia isso. O artigo termina falando de Vanessa Lourenço, uma brasileira, não-muçulmana, que é uma das designers mais reconhecidas do burkini.

No Sábado, quando fui à pedicure, na TV local passavam imagens de mulheres muçulmanas a ser assediadas nas praias francesas. Hoje o burkini está em destaque na Bloomberg, onde a última op-ed do Leonid Bershidsky explora alguns aspectos da sociedade francesa, como uma canção de George Brassens de 1952 acerca de como as boas gentes tratam quem não se conforma com o status quo.


Carrossel

Em 1976, Zeca Afonso lançou aquele que é um dos seus melhores álbuns, “Com as Minhas Tamanquinhas”. A música que mais me intrigava quando eu era pequeno era a última, “Alípio de Freitas”. Contava a história de um homem que em 1970 foi preso e torturado no Brasil, com a companheira e a filha. Sempre me chocou o confronto entre o tom da música e a brutalidade do que era relatado.

Mais tarde soube que quase tudo na música era factual, desde o nome da prisão, Tira-dentes, às ligas camponesas que andou a treinar. A principal imprecisão talvez seja quando diz que não havia tortura que domasse Alípio de Freitas. Em várias entrevistas que deu, Alípio confirma que de facto a tortura não o fez falar, mas só não se suicidou porque não conseguiu. Na verdade, transportava sempre um veneno consigo, para o caso de ser apanhado e torturado. Infelizmente, uns dias antes de ser capturado, o veneno que sempre trazia consigo tinha sido usado para eutanasiar um cão.

A filha, que também esteve presa com a mãe, contaria que na adolescência não percebia a música do Zeca Afonso. Que tinham sido tempos demasiado sofridos e não entendia como a prisão do pai podia servir de mote para uma canção.

Essa filha chama-se Luanda e também canta. Em 2014, mais de 40 anos depois de ter sido presa em menina, fez um álbum de homenagem a Zeca Afonso, “Com as Minhas Tamanquinhas”, onde, entre muitas outras, canta a música que Zeca tinha dedicado ao seu pai, Alípio, que, aliás, também participa nesse álbum, cantando "Traz Outro Amigo Também".

domingo, 28 de agosto de 2016

Vida de cão

Um dos Instagrams que eu sigo é o @StgPepperFriends, que é uma fundação, localizada na ilha de Aruba, que recolhe animais abandonados e os dá a adoptar a pessoas espalhadas pelo mundo. Esta entidade é obra da @yoga_girl, uma rapariga sueca, a Rachel Brathen, instrutora de yoga, que tem uma história de vida, no mínimo, interessante -- o Instagram dela está repleto do que os americanos designam de "over-sharing".

Nos últimos dias foram recolhidos vários cachorrinhos com cerca de uma semana de vida. É claro que há fotos e um vídeo deles gorduchinhos à procura de comida num cobertor. Sim, sim, eles procuram a mãe para comer, só que a mãe não foi recolhida imediatamente, ela e o sétimo cachorrinho foram os últimos a ser encontrados.

Ainda não percebi muito bem como é que isto funciona financeiramente porque, normalmente, os animais são transportados por avião até ao seu destino final, dado que há muitas adopções internacionais. Devem receber muitos donativos e ter um acordo com alguma companhia aérea porque, senão, o custo seria proibitivo.

sábado, 27 de agosto de 2016

O mérito na eleição de SGNU

Nas últimas semanas, tenho lido repetidas vezes o argumento de que só o mérito deveria contar para a eleição de Secretário-Geral das Nações Unidas (SGNU). O argumento adianta que, portanto, o género ou a nacionalidade do candidato não devem contar. Normalmente, leio-o em textos de quem está a defender que deveria ser António Guterres o escolhido. Ora, vou tentar ignorar (pelo menos à partida) a discussão sobre se é correcto ou não haver quotas em política (fica para outro post), e vou assumir (à partida) que Guterres é de facto e inequivocamente o “melhor” (digo à partida, porque é inevitável ir dar a estes dois aspectos). Mesmo partindo deste ponto, há um facto que tem estado estranhamente ausente das discussões, talvez por ignorância ou por conveniência. Mas é um facto que torna a natureza do cargo de SGNU mais clara.

Facto: o mérito NUNCA foi o único factor que contou para a nomeação do Secretário-Geral das Nações Unidas. Na verdade, um dos principais factores que sempre contou para a eleição foi a nacionalidade, ou mais especificamente a região do globo. Há um acordo implícito entre os estados-membros que o secretário-geral deve ir rodando pelos vários continentes/regiões.

Desde os anos 70, estes foram os secretários-gerais da ONU:
- Kurt Waldheim - Western Europe
- Javier Perez de Cuellar – Latin America
- Boutros-Boutros Ghali - Arab Africa
- Kofi Annan - Sub-Saharan Africa
- Ban-ki Moon – Asia

Há já alguns anos que se vinha a falar de que o próximo SGNU deveria vir da Europa de Leste (que nunca teve um SG, mesmo após o fim da Guerra Fria). Mas, de qualquer forma, o que importa realçar é que houve uma rotatividade perfeita entre os continentes. Isto significa que o mérito nunca foi a única coisa que contou. O objectivo nas eleições de SGNU nunca foi eleger sempre a pessoa com mais mérito. Basta reconhecer que era altamente provável que, por exemplo, “na vez” da América do Sul a pessoa com mais mérito estava, na verdade, noutra região qualquer. Talvez o caso mais flagrante seja o de Boutros-Boutros Ghali (egípcio cristão copta). A sua nomeação e eleição ocorreram após um grupo de 102 países (que incluía muitos países Africanos e contava com o apoio da China) ter afirmado que bloquearia qualquer candidato não-africano. Como tinham votos suficientes na Assembleia Geral para vetar qualquer escolha e ainda o voto da China no P5, foram bem sucedidos: o Conselho de Segurança propôs, de facto, um Africano, e ele foi eleito. No final do seu mandato, no entanto, Boutros-Boutros Ghali não conseguiu ser reeleito. A Administração Clinton não gostava muito dele. Ghali não apoiou os bombardeamentos da NATO na Bósnia, ao contrário de Kofi Annan, e a somar a isso teve um mandato repleto de acções controversas da ONU: a desintegração da Jugoslávia, a crise na Somália e o genocídio do Rwanda. Bill Clinton, na altura pressionado pelas eleições presidenciais de 1996, decidiu que os E.U.A. vetariam a renomeação de Ghali. Foi então eleito outro Africano, o mais popular Kofi Annan. Mas a eleição de Kofi Annan mostra mais uma vez que não é o mérito apenas que conta. Afinal de contas, Annan, conduzido pela primeira vez em 1997, tinha sido precisamente o Head of Peacekeeping Operations durante a crise da Somália e o genocídio no Rwanda, dois dos maiores fracassos de sempre da ONU.

Da mesma forma, se um grupo de 102 países se juntasse agora e ameaçasse bloquear qualquer candidato que não seja mulher, a ameaça seria igualmente válida e necessária considerar. Se uma nova administração Clinton bloqueasse logo no P5 qualquer candidato não mulher, isso era perfeitamente legítimo. Claro que um outro grupo de países também pode ameaçar bloquear qualquer candidato não homem. E aí há um impasse. E, sendo assim, seriam precisas negociações.

A lição a retirar disto é que o cargo de SGNU não é um cargo para o qual o mérito seja o único factor determinante. E, a meu ver, não há nada de errado nisso. Porque não é um cargo técnico - é um cargo intrinsecamente político. Aliás, a própria eleição não pode ser comparada a uma entrevista de emprego em que uma empresa avalia os currículos profissionais e características pessoais dos vários candidatos e escolhe o melhor. Estamos a falar de um cargo cuja nomeação depende de negociações e compromissos entre nações. Nações essas que têm interesses (económicos, religiosos, políticos, bélicos) diferentes nas relações internacionais. Nações que têm visões do mundo diferentes, mas que ainda assim concordaram em fazer parte de uma organização que inclui países com os quais não sentem qualquer afinidade, e muitas vezes contra os quais têm mesmo antagonismo e conflitos armados. A legitimidade e sobrevivência da ONU, como qualquer norma internacional, dependem dos estados-membros continuarem a reconhecer-lhe legitimidade. Parte da legitimidade advém da representatividade dos seus órgãos. Isso talvez nos dê outra visão acerca das negociações e compromissos que envolve: atingir um compromisso entre interesses numa negociação entre Estados não se trata de termos uma visão cínica das relações internacionais, trata-se de garantir a própria sobrevivência da ONU enquanto instituição. Mais, as próprias nações são elas próprias heterogéneas a nível doméstico, o que só adiciona mais um nível ao jogo político. Nas democracias e nas ditaduras, há sempre uma oposição política interna aos representantes que vemos no palco da ONU, donde aquilo que os líderes fazem no palco internacional também pode ser influenciado e motivado pelo jogo doméstico.

Assim, a partir do momento em que reconhecemos que o SGNU é um cargo político, o mérito torna-se subitamente um conceito vago e pouco útil. O que é o mérito num cargo como SGNU? O que é melhor: ter uma carreira medíocre como chefe de governo de um Estado e uma carreira brilhante como funcionário burocrático de uma organização internacional ou vice-versa? O que é que prepara mais: ser diplomata ou burocrata? E será que Guterres é mesmo inquestionavelmente o candidato mais qualificado? Abandonou o governo de um país pacífico com a justificação de que esse país estava “um pântano”. E quando tiver de moderar o verdadeiro pântano que é a Assembleia Geral das Nações Unidas com todas as nações do mundo e centenas de desentendimentos? Será que o trabalho que realizou como Alto Comissário para os Refugiados foi realmente excelente, ou será que outro qualquer burocrata inteligente e qualificado teria feito mandatos em tudo semelhantes? Não tenho a resposta a estas perguntas. A acrescentar à dificuldade de avaliar o mérito em política (quando é que é tempo de procurar consenso ou de afirmar valores com determinação? Que características queremos privilegiar?), temos a dificuldade de o definir.

Para mim, a capacidade de representação faz parte do mérito de um político. Como disse acima, numa organização internacional esta característica é especialmente importante, uma vez que a legitimidade e sobrevivência da organização dependem ainda mais da sua representatividade. Se nunca tivesse havido um secretário-geral africano no passado, nem perspectivas para a sua eleição no futuro, seria natural que os países africanos se sentissem diminuídos e não representados e, com o tempo, atribuíssem menos legitimidade à ONU e às suas decisões. Da mesma forma, não me parece que ignorar a representação de metade da população mundial seja a estratégia mais inteligente. A verdade é que nada explica que nunca tenha havido nenhuma mulher SGNU: nunca houve nenhuma mulher qualificada ou nunca houve nenhuma mulher politicamente desejada? E agora, se houver, qual é o problema disso?

Deixem os órgãos políticos fazer aquilo que são supostos fazer: política. O SGNU acabará por surgir como produto das negociações entre diferentes interesses. De um certo ponto de vista, será o equilíbrio resultante do confronto dos vários interesses, que têm forças diferentes. Alguns desses interesses serão interesses que defendem a representação descritiva e simbólica das mulheres. E não há nada de errado disso.

The end

Neste debate do burkini chegou-se ao ponto em que já não há argumentos novos. Já se sabe que ao argumento A se vai seguir o contra-argumento B, a que nós respondemos com o contra-contra-argumento C.1 (ou C.2, dependendo das nuances e da inteligência da pessoa que contra-argumentou com B) e, claro, já se sabe a resposta que o argumento C.1 vai levar. O pior de tudo é que quando se chega ao contra-argumento Z, volta-se a A, numa espiral a fazer lembrar a espiral recessiva.
Assim, vou parar de participar neste debate -- com excepção de um artigo que me pediram para escrever, mas que não deverá ter grande visibilidade.

Espero apenas que os meus amigos católicos não tornem a usar contra mim um argumento que usavam constantemente sempre que eu criticava a ICAR ou os apoios do Estado à ICAR . Esse argumento -- não é bem um argumento, mas enfim -- era simples: "Só criticas a igreja católica, se se passasse com qualquer outra religião tu não dizias nada. Quando são outras religiões podem sempre contar com a tua defesa."

É mesmo verdade, ouço este argumento constantemente, até me chegaram a dizer que se os contratos de associação envolvessem escolas islâmicas em vez de católicas eu já não seria contra que o Estado financiasse essas escolas.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Emigrámos?

Ao ler alguns dos comentários sobre o burkini, fico com a ligeira sensação de que grande parte dos portugueses emigraram para o norte da Europa, onde as viúvas vestem roupa colorida e têm cabelo curto. Ou talvez, nem seja tanto impressão, mas sim desejo, pois se o que alguns portugueses recomendam para as mulheres que usam burka e burkini, em França, for aplicado em Portugal, receio que, de um dia para o outro, as viúvas tradicionais portuguesas comecem a ser assediadas na rua. Talvez já não haja viúvas destas, pensei.

Como não estou aí para fazer pesquisa de campo, fiz uma busca na Internet e encontrei o Power-Point de Rui Grilo, psicólogo em Portugal, sobre viuvez e parece que em 2013 ainda havia viúvas assim porque ele usou esta fotografia. Ora digam-me lá se esta mulher não mete dó de tão oprimida que está? Porque razão se sente ela na obrigação de se vestir de preto da cabeça aos pés? Que sociedade arcaica e misógina é a portuguesa para permitir que tal aconteça?

Sensibilidade e bom senso

Em final de silly season, o recente “caso” dos filhos do embaixador do Iraque em Portugal veio trazer para a praça pública o problema técnico-jurídico da chamada “aplicação da lei penal quanto às pessoas”. Por imperativos constitucionais, o princípio da igualdade é a regra e as suas limitações são apenas duas: as imunidades políticas e as diplomáticas e consulares. Quanto a estas últimas, já muito se tem falado da Convenção de Viena de 1961 sobre o tema. É essencial compreender-se que, para o sucesso das relações entre os Estados e as organizações internacionais, os respectivos agentes necessitam de certos privilégios de jurisdição, à cabeça dos quais em matéria penal. Tal não significa – nem pode significar – impunidade, mas também é um dado que os mecanismos para o seu efectivo controlo são relativamente pífios. Aliás, o Direito Internacional Público não tem uma polícia ou um Tribunal únicos, razão pela qual é tido como o mais débil dos ramos de Direito do prisma da sua coercibilidade.
Acresce que estamos em face de relações entre entidades soberanas, sempre sujeitas a melindres e com repercussões graves, desde logo, do prisma económico-social. Donde, estes temas devem ser tratados com resguardo. É evidente que os mass media têm feito o seu trabalho, amiúde exagerado, porventura por falta de assuntos. É ainda claro que o Ministério Público tem empreendido o que lhe compete, e o pedido de levantamento da imunidade diplomática surge como um procedimento normal, a que talvez não tenha sido indiferente a pressão da opinião pública. O Ministério dos Negócios Estrangeiros tem monitorizado a situação de modo correcto. Então, porquê o sentimento de impunidade que campeia por aí? Exactamente porque os Estados signatários da Convenção bem sabiam que riscos como este existem, mas que as vantagens dela decorrentes são superiores.
Se o Estado iraquiano não proceder ao levantamento da imunidade, Portugal apenas pode expulsar os indivíduos em causa, passando a ser, cada um deles, persona non grata. Tal importa, ainda, que o nosso país possa remeter, a pedido das autoridades judiciárias nacionais, os elementos probatórios até ao momento existentes às autoridades do Iraque, que deverão julgar os alegados agentes do crime (o velho princípio punire aut dedere). É evidente que não temos quaisquer garantias efectivas do modo como esse julgamento decorreria fora de Portugal, por não existir jurisdição sobre Estado estrangeiro. A impunidade – a provar-se a existência de crime e que aqueles foram os seus autores – teria reflexos diplomáticos nas relações entre os dois países, com eventuais sanções económicas que, de momento, tirando zonas de franja, exigiria uma posição conjunta dos Estados-Membros da UE. Ora, existem numerosos e contraditórios interesses no clube europeu quanto ao Iraque, o que tornaria impossível – arrisco-me a vaticinar – a adopção de medidas de retaliação de natureza colectiva.
No ideal dos mundos, o Iraque levantará a imunidade e os suspeitos poderão ser constituídos arguidos, com aplicação de medidas de coacção processual adequadas, e estarão em condições de se defenderem. Não podemos esquecer que qualquer suspeito se presume inocente até ao trânsito em julgado da decisão final, bem como que os jovens iraquianos têm também interesse legítimo em apresentar a sua versão dos factos, o que se estende ao embaixador que, na cena internacional, já não poderá apagar esta mácula da sua carreira. Como sempre, não deve haver julgamentos em praça pública, mesmo que os alegados delinquentes tenham confessado uma parte dos factos em entrevista. Evitemos a histeria colectiva, sem que isto signifique qualquer desculpabilização de algum dos contendores, mas a afirmação dos esteios fundamentais do Estado de Direito. Numa organização política deste tipo, são os instrumentos jurídicos convencionais e legais as nossas “armas” e não o “diz-que-disse”.
Todos esperamos que o Rúben recupere o mais rapidamente possível e que possa contribuir para o apuramento da verdade. Da entrevista dos filhos do embaixador, de muito duvidosa conveniência, resulta, a dado passo, que episódios como este são o dia-a-dia em Portugal. Não é verdade, felizmente.
A justiça tem o seu tempo. Não é o da comunicação social. Nunca poderá ser, sob pena de, em minutos, se operar o julgamento, a condenação e o cumprimento da sanção.
Felizmente Agosto está a terminar e, sem menorizar a gravidade deste caso, suspeito bem que outros existam que merecem a nossa atenção. De repente deixou de se discutir uma verdadeira estratégia para a floresta, a recapitalização da Caixa, a necessidade de um orçamento rectificativo, os sinais de dissenso na coligação de incidência parlamentar informal que sustenta o Governo, os dados macroeconómicos, a reforma da Segurança Social.
Pois é, Setembro está à porta e é tempo de voltarmos à realidade. Mesmo que ela seja dura.

Mais um aliado do bikini (ou fato de banho)

Enquanto o Conselho de Estado francês proíbe a proibição do burkini, Nicolas Sarkozy, candidato assumido às presidenciais de 2017, defende a sua proibição em toda a França. Motivos? Preocupação com os direitos e liberdades das mulheres muçulmanas? Não, nada disso. Os argumentos do candidato conservador para ver as mulheres muçulmanas mais despidas na praia são outros: “Eu vou ser o presidente que restabelece a autoridade do Estado” ou “Onde está a autoridade quando são as minorias que governam? Nunca tanto lhes tinha sido cedido”. Como aqui escrevi, o burkini é sobretudo um pretexto (estapafúrdio, sem dúvida) para alguns políticos franceses (de direita e esquerda) mostrarem ao povo força e autoridade. O resto são especulações filosóficas sobre a liberdade. 

Amigos do peito

Desde que se começou a discutir o problema do burquíni, algumas pessoas têm levantado a questão de as mulheres ocidentais não serem verdadeiramente livres porque é muito mais comum ver gajos em tronco nu do que mulheres. Não conheço as leis dos bons costumes, mas imagino que seja ilegal para uma mulher andar a passear pelas ruas e centros comerciais em tronco nu. E, se assim for, é injusto. 

Em Nova Iorque, esse farol para a humanidade, já é legal as mulheres andarem em topless desde os anos 90. Recentemente, nas zonas mais turísticas, parece que é bastante comum andarem meninas a passear e a abanar as maminhas enquanto convidam, em troca de uma gorjeta, os turistas a tirar fotos com elas. 

(Queria ver os trabalhadores da ASAE a fiscalizarem as facturas destas senhoras.) 

Penso que em Portugal está na altura de criar um movimento activista que promova esta causa. “Libertem as mamas” seria um possível nome para esta organização, mas tem uma conotação um bocado porca e eu não quero que fiquem com a ideia de que somos uma cambada de tarados. Proponho então que esta associação sem fins lúdicos nem lucrativos se chame “Amigos do peito.” Fica a sugestão para quem quiser iniciar o movimento.

Adenda

Antes que me venham acusar de sexismo, acusação a que sou muito sensível, , aqui fica a foto de um homem em topless. Assim fica claro que a associação é para todos os peitos.

1980, Argélia



Desculpem a falta de pontuação, mas o meu pai era trapalhão a escrever. 



Deixem-nas ser livres

Antes do mais, uma declaração. O que penso sobre isto não tem uma base racional. O que penso é uma ramificação do que senti quando vi as imagens de uma praia em França, onde uns polícias armados obrigaram uma mulher a despir o que trazia vestido, perante o olhar da filha pequena. O que penso sobre o assunto é basicamente o resultado de racionalizar o que senti, e o que senti foi que aquilo, aquela barbárie, não pode estar bem. O que quer que pensasse antes sobre esse assunto, ou outro qualquer, se não for compatível com o que senti ao ver aquelas imagens, também não pode estar lá muito bem.

Hoje, o Luís Aguiar-Conraria no mural dele deu o exemplo da escravatura. É um exemplo desafiante. O que fazer aos indivíduos que, no momento da sua libertação, preferem continuar a ser escravos? Ou, tirando dramatismo à questão, o que fazer se alguém estiver disposto a trabalhar à borla para outra pessoa? Devemos deixar? O que lhe respondi foi que devíamos fazer o que já fazemos, que é: nada. Um tipo, como bem sabemos, pode infelizmente trabalhar à borla. Mas não é legalmente obrigado a isso: pode sair quando quiser. Há pouco, o Luís mostrou-me, e não era difícil, que eu estava a ser incoerente, porque basicamente o que estava a dizer era incompatível com a defensa de um salário mínimo. E ele tem razão, estava a ser incoerente. Mais: eu defendo não só um salário mínimo, mas toda a kriptonite anti-liberal a que tenho direito, incluindo quotas de emprego para mulheres, tectos salariais para CEOs, e, bom, profissionalmente mal estaria se não defendesse uma série de regulações económicas que interferem com a liberdade de duas partes definirem inteiramente os termos de um acordo que as obrigue. 

Como resolver este aparente paradoxo? Novamente, o meu critério é simples: se o que penso não é compatível com o choque que senti ao ver aquelas imagens da praia, então não pode estar certo. E como eu acho difícil estar errado quando defendo que ninguém deve trabalhar para um empregador à borla, tem de haver aqui alguma forma de distinguir as situações. E há. O que é uma sorte, para mim. O que defendo é a regulação do poder entre partes que estão em condições desiguais. Defendo que uma empresa que produz eletricidade não a deve poder vender ao preço que bem entende, porque os consumidores não têm como comprá-la a mais ninguém. Defendo que um trabalhador não possa aceitar ser pago abaixo de um limiar mínimo, porque há o risco sério de ele não ter outra opção que não aceitá-lo. Mas não defendo que um membro do casal tenha de exigir pagamento por meter a louça na máquina ou ir deitar os miúdos. E porque é que não defendo isso? Ele não pode ser coagidos a fazer esse trabalho? Pode. Mas há uma fronteira que temos de definir, não é? O Estado não vai interferir em cada relação de poder. Mas deve interferir naquelas onde uma das partes, porque quer ou sem querer - argumentaria que é irrelevante -, não tem opção que não a de prescindir da sua liberdade. A única liberdade que acho não deve poder ser exercida é a de deixar de ser livre.

A relação da mulher com a cultura muçulmana é desigual. É óbvio. E em muitos países ela não tem opção que não a de deixar de ser livre. Mas isso não é verdade na sociedade francesa. Ela tem a opção de deixar o marido, se for o caso, e, se for chateada, tem a opção de ir à polícia. É verdade que pode haver toda uma porrada de razões pelas quais ela continua a usar a burka, e algumas podem não ser boas. Pode ser que nunca tenha tido auto-estima suficiente, ou conhecimento de que há uma outra realidade. Pode ter medo do inferno. Pode achar que é a única forma de ser acolhida na comunidade onde vive. Mas ela pode escolher uma vida inteiramente diferente, se assim quiser. A escolha de não ser livres, para ela, é inatingível. É que, ao fazer essa escolha, está a ser inteiramente livre - está a exercer a sua liberdade, sem a perder no caminho. A qualquer altura, pode mudar de ideias, e ninguém pode fazer nada que a impeça disso. É a beleza das sociedades onde há liberdade. Não ser livre não é uma opção. Ser livre é. Uma opção. Não pode ser obrigada a isso.  

Qualquer outra imposição exercida sobre ela terá de conviver com a imensa ironia de acharmos que podemos obrigar alguém a ser livre.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

A idade moderna

Uma das piores características dos portugueses é a mania que são muito modernos, quando na realidade não são, como nesta coisa da discussão do burkini. Escreve-se no Sol:

Pergunto-me que liberdade de decisão sobre o seu corpo tem uma mulher criada e educada nos preceitos do Islão, à qual desde o nascimento foi dito que uma mulher destapada é uma pecadora destinada à condenação eterna, e que, se o fizer, será, no mínimo, repudiada pela família.

Na Europa, a discriminação de género não é admissível.


Fonte: Inês Pedrosa, Sol, 8/24/2016

Ainda sou do tempo que se dizia às mulheres que tinham o período para não lavar a cabeça porque enlouqueceriam, que não podiam fazer bolos porque a massa não cresceria, etc. Aposto que algures em Portugal ainda há mulheres que acreditam nisto. Talvez seja bom, para as libertar da opressão, irmos à caça delas e darmos-lhes um bom banho na Praça Pública para lhes demonstrar que não, não enlouqueceriam. Se mandar despir uma muçulmana na praia em França, a liberta e a faz sentir melhor; então dar banho a uma portuguesa no meio da rua também a libertará e ficará melhor.

Hoje um homem português explicou-me esta coisa do que eu devia sentir como mulher -- estou sempre a receber lições dos homens e muitas vezes fantasio em cortar-lhes a pilinha: sem pilinha, estariam mais próximos fisicamente de uma mulher, logo seriam ainda mais qualificados para me dar lições. Então dizia-me ele que não foi para usar o burkini que se lutou para libertar as mulheres, no Ocidente. Ele achava que elas não deviam andar de burkini, mas depois diz-me que também não deviam andar nuas porque o nudismo ofende os outros.

Porque razão é que o nudismo ofende as pessoas? Não é porque há quem ache que o corpo humano nu é obsceno, porco, convida a sexo, e sexo é também uma coisa porca, que se deve esconder porque senão somos uns grandes depravados? Então que diferença há entre os muçulmanos e os outros que não permitem o nudismo? Ah, já percebi, na proibição do nudismo ninguém pode andar nu, logo não é verdadeiramente discriminação porque em vez de só o corpo das mulheres ser porco, o dos homens também é uma javardice. Então, sentem-se melhor, seus porcalhões pecadores?

Haver alguém que acredite nesta ideia de que, na Europa, a discriminação de género não é possível é para mim surpreendente. Basta ver a composição dos governos ou dos parlamentos, por exemplo, para se constatar que a discriminação das mulheres está bem viva na Europa. Enquanto for preciso legislar para as mulheres terem direitos, as mulheres são discriminadas. Um governo que diz ser a favor das mulheres e também diz que está à espera de passar legislação para dar oportunidades e direitos às mulheres, é um governo que discrimina à vista de toda a gente.

Em Portugal, é flagrante a discriminação das mulheres. Não se sintam muito superiores por acharem que os homens muçulmanos discriminam muito mais do que os ocidentais. A discriminação não é uma variável contínua; é uma variável binomial, que admite dois valores: sim ou não.


O problema não é o burkini

A questão fundamental da proibição do burkini nalgumas praias francesas é esta: há dois ou três anos nenhum político francês se atreveria a uma medida destas, nem nenhum tribunal teria coragem para a sancionar. Toda a gente acharia ridículo e inadmissível que o Estado mandasse vestir ou despir peças de roupa a uma senhora numa praia. O que se está a passar é uma das consequências do terrorismo islâmico. Se isto se tornou possível, significa que muitos franceses sentem que estão agora criadas as condições para manifestarem publicamente a sua desconfiança em relação aos muçulmanos. Verdade que o islão é incompatível com os direitos das mulheres, pelo menos como os concebemos actualmente no ocidente. Todavia, não foi essa a preocupação das autoridades francesas quando decidiram avançar com a proibição. O burkini é apenas um pretexto. Os políticos querem simplesmente ir ao encontro de um sentimento popular, mostrando um sinal de força e deixando claro quem é que manda. Se os atentados se prolongarem e a comunidade muçulmana não se demarcar claramente deles, podemos contar com outras medidas do género. Medidas que nem nos passam pela cabeça.

Não compreendo

Na discussão do burkini, não compreendo por que razão proibir uma mulher de o usar a protege da opressão do marido. A segunda coisa que não compreendo é o conceito de liberdade: liberdade inclui adorar e usar os símbolos religiosos que bem entendermos, até porque nas sociedades avançadas diz-se que há separação de estado e igreja, logo acho as leis francesas em violação deste princípio.

Acho que estamos a ir por caminhos muito sinuosos na discussão do burkini. Há mulheres que gostam de ser submissas quando têm sexo, querem que os parceiros as atem e lhes batam. Historicamente, as mulheres foram submissas e objecto de prazer dos homens, logo será que também vamos proibir algumas práticas sexuais das mulheres, mesmo que elas as apreciem? Não podemos deixar que elas se sujeitem a situações de opressão.

Não deixo de achar estranho que uma mulher ocidental possa ir a muitos países muçulmanos e tem áreas reservadas, onde pode vestir à maneira ocidental e ninguém a incomoda. Se sair desses lugares, tem de se submeter ao código de conduta local, mas tem a opção de ir para um lado ou para o outro. Contrasto isto com a atitude de muitas pessoas na sociedade ocidental e acho que aspiram a que as mulheres muçulmanas não se submetam a um código, mas se submetam a outro: estão no Ocidente, vestem à ocidente. Para libertar, é necessário homogeneizar, o que não compreendo.

Um contrafactual simples

Por momentos, façam de conta que os pretos são tratados por uma religião tal como as mulheres são tratadas pelas correntes radicais islâmicas.

Ou seja, não se aperta a mão aos pretos, não se os olha nos olhos, não podem ir sozinhos falar com os seus professores brancos, alguns não podem ir à rua sozinhos e, claro, devem andar de corpo coberto como sinal de modéstia e submissão.

Também iam a correr comprar burkinis pelo direito dos pretos a vestir o que lhes apetecesse?

PS Não é preciso grande imaginação para imaginar uma religião onde os negros são inferiores. Era isso que os mórmons professavam, até que, há umas décadas, viram a luz. Por coincidência, viram a luz quando começavam a ter problemas com os tribunais americanos, que os acusavam de discriminação racial.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Entretanto, na América...


E os homens?

Porque é que não legislam a indumentária dos homens (também há mulheres que usam) que os obriga a usar o dastaar? Ou só sabem legislar sobre o corpo das mulheres? Ou será que quando é uma coisa que também afecta homens não interessa para o bem-estar da sociedade?

SIKH THEOLOGY WHY SIKHS WEAR A TURBAN

The dastaar, as the Sikh turban is known, is an article of faith that has been made mandatory by the founders of Sikhism. It is not to be regarded as mere cultural paraphernalia. When a Sikh man or woman dons a turban, the turban ceases to be just a piece of cloth and becomes one and the same with the Sikh's head.
The turban as well as the other articles of faith worn by Sikhs have an immense spiritual as well as temporal significance. The symbolisms of wearing a turban are many from it being regarded as a symbol of sovereignty, dedication, self-respect, courage and piety, but the reason all practicing Sikhs wear the turban is just one - out of love and obedience to the wishes of the founders of their faith.

The turban's importance can be found in just about every culture and religion, starting with the ancient Babylonians to western religions such as Judiaism, Christianity, and Islam, as well as eastern traditions. The Old Testament proclaims, "Once they enter the gates of the court," implying God's court, "they are to wear linen vestments. They shall wear linen turban." Elsewhere in the Old Testament, the significance of the turban is further highlighted: He put the turban upon his head and set the gold rosette as symbol of holy dedication on the front of the turban as the Lord had commanded him. Moses then took the anointing oil, anointed the Tabernacle, and all that was within it and consecrated it. (Leviticus 8,9) Set the turban on his head and the symbol of holy dedication on the turban. Take the anointing oil, pour it on his head and anoint him. (Exodus 29-6)


Fonte: The Sikh Coalition (enfâse meu)