domingo, 27 de agosto de 2023

Quarta-feira, depois do almoço

Foi na Quarta-feira, depois do almoço, que morreu a K. aos 94 anos. Na Quinta-feira à noite recebi o e-mail da minha vizinha onde me dizia que decerto eu já tinha ouvido da sua morte, mas eu ainda não sabia. Eram melhores amigas não porque tivessem sido melhores amigas, mas porque as duas eram as últimas sobreviventes do seu círculo de amizades. Agora resta apenas a minha vizinha que está triste por ser a última, mas o plano é chegar aos 100 anos porque um vizinho lhe deu uma garrafa de vinho caro e ela quer bebê-la na celebração--falta ano e meio.

Os últimos meses foram difíceis. Costumavam telefornar-se diariamente, mas a K. já estava esquecida e contava à minha vizinha coisas que ambas sabiam porque as tinham vivido. A minha vizinha ficava frustrada e dizia não saber o que se passava, que estava preocupada com a amiga. Já para o fim, a K. queria falar com ela, mas ela não sabia se a devia ir ver porque, há muitos anos, alguém das relações delas estava a morrer e a K. não achava bem que fossem visitar a pessoa. Para tentar resolver o impasse, disse-lhe que obviamente que tinha de ir, dado que a K. a queria ver.

A última visita correu bem, falaram quase 45 minutos e a K. estava lúcida, mas com bastantes dores e durante o tempo inteiro não se tinha mexido. Inquiri do porquê de não a mudarem de posição, dado que estando deitada ia ficar com feridas no corpo. "Rita, não interessa se ela terá feridas ou não. Ela já não vai melhorar." respondeu-me. A K. estava pronta para morrer, dizia que queria paz. Quando se despediram, a minha vizinha agradeceu à K. a sua amizade, ao que ela retorquiu "You're welcome." Riram-se porque era uma resposta tipicamente à K. Qualquer outra pessoa teria reciprocado o sentimento, mas ela não estava para essas coisas.

Quando conheci a K. e ela soube que era de Portugal, declarou-se a fã número um do António Lobo Antunes. Adorava os seus livros e já os tinha lido várias vezes--era uma leitora voraz. Também gostava muito de José Saramago, especialmente do livro "All the Names" ("Todos os Nomes"), que a vi mencionar a várias pessoas. Por sugestão dos leitores da DdD, recomendei-lhe os livros do Gonçalo M. Tavares que comprou imediatamente e leu. O último livro que lhe sugeri foi "Empty Wardrobes" (Os Armários Vazios") da Maria Judite de Carvalho: assim que lhe falei dele foi à Amazon e encomendou.

Eu e ela partilhamos o mesmo dia de aniversário, mas com 43 anos de diferença. No ano em que nasci, calhou o nosso aniversário ser à Quarta-feira, e eu apareci depois do almoço.

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Claro que mudou

Tenho acompanhado com alguma surpresa a discussão em torno do estado da nação. Os diagnósticos feitos são os mesmos de sempre: (a) situação demográfica má e agora pior devido ao aumento da emigração; (b) carga fiscal elevada; (c) fraca produtividade do trabalho; e (d) salários baixos. A única coisa que mudou no discurso é que agora a taxa de desemprego está a níveis baixos. Como receita de crescimento, os de Esquerda propõem aumentar despesa em educação e saúde e os de Direita receitam uma descida de impostos, como se essas coisas tivessem valido ao país no passado.

Em Junho deste ano, a Universidade do Porto publicou um estudo acerca da economia não registada em Portugal, no qual se estimava que tivesse atingido 34,37% do PIB. Se isto é verdade então o problema não é tanto os impostos serem muito altos, mas sim haver uma parte significativa da população que consegue escapar a pagar impostos, logo a carga fiscal acaba por ser concentrada em menos contribuintes. A conclusão do estudo é curiosa: a solução está em

"que o governo tome medidas adequadas e abrangentes para tornar a economia oficial mais atrativa e competitiva – face à ENR, mas também face aos países concorrentes –, de um modo geral, para que as pessoas (trabalhadores e empresários) não tenham de recorrer à ENR para obter níveis de rendimento mais condignos ou até mesmo emigrar (deslocalizar, no caso das empresas)”, destaca Óscar Afonso, autor da investigação e diretor da FEP."

Fonte: UP

Ou seja, o crime compensa e quem não paga pode continuar a não pagar. Ainda por cima, o estado gastou mundos e fundos a desenvolver uma Autoridade Tributária das mais sofisticadas do mundo e, no final do dinheiro gasto, serve apenas para assediar quem já paga impostos. Ainda por cima, ironicamente os contribuintes é que suportaram o custo de um sistema que os persegue e que não consegue apanhar quem não paga. Ironicamente, se a economia paralela fosse declarada, Portugal teria um rácio de dívida pública-PIB mais baixo e haveria mais receitas fiscais para amortizar a dívida e até para melhorar a qualidade da saúde e da educação pública em Portugal. E sendo uma economia de menos risco, também poderia conseguir financiar-se a custos menores.

Onde é que está a economia paralela ou não registada e quem são as pessoas que afinal até são bastante produtivas para gerar mais de 34% do PIB registado? O estudo acha que é uma economia de vícios: corrupção, branqueamento de capitais, fraude, etc., mas acho este diagnóstico suspeito. Se eu tivesse que sugerir a área que aumentou bastante de actividade recentemente e que provavelmente uma parte significativa vive à margem, diria que é a economia digital, especialmente através das redes sociais, o que nos leva a outra ideia.

Portugal já tinha grande tendência para a economia dos biscates e agora, na era dos influencers, condutores de Uber, senhorios da Airbnb e do Instagram, personal coaches, etc., ainda tem mais e por isso o desemprego baixou -- não só em Portugal como noutros países. Não é verdade que a economia portuguesa não tenha mudado, mudou bastante e até se internacionalizou ainda mais. Basta participar nos workshops de influencers portugueses para encontrar pessoal a assistir que está espalhado por todo o mundo.