Depois disso senti culpa de não estarmos com o meu avô. Talvez se estivessemos todos juntos ele não tivesse morrido. E vergonha, senti muita vergonha. Deixei de conseguir tocar nas coisas do meu avô, mas só nas dele. A minha avó tinha morrido no ano anterior, mas os seus objectos nunca me inspiraram medo. Quando a minha mãe morreu, há 15 anos, tiveram de esperar que eu chegasse a Portugal para fazer o enterro. Quando estávamos na morgue, perguntaram-me se a queria ver, mas recusei.
Viver longe da família é um bocado refugiar-nos da morte. Há pessoas que conheci aqui que morreram, mas foi sempre longe de mim. Até agora. Há menos de dois anos, a mãe da minha vizinha "adoptou-me". Uma vez, na cozinha lá de casa, ela dizia-me que não a deixavam partir -- morrer -- e eu respondi-lhe que não podia morrer. Se morresse, eu ficaria sozinha no país, não teria ninguém para cuidar de mim. E ela, apesar do início da sua demência, respodeu que isso não, ela ia cuidar de mim.
No último ano, tenho ajudado a cuidar dela. Estranhamente, ela fica calma ao pé de mim; sente-se bem disposta, tenta fazer piadas quando conversamos. Só que todos os momentos que passa comigo são ligeiros: não lhe peço para comer, nem lhe dou banho, medicamentos, etc. Nestes últimos dias nota-se que há um desajuste maior entre a cabeça e o corpo. O coração já está muito fraco, tão fraco que, há duas semanas, teve uma pneumonia da qual conseguiu recuperar. No entanto, cada dia está a ficar menos flexível, como se a cabeça estivesse a ficar aprisionada no corpo. Tem dificuldade em falar, não consegue mover-se, o sangue acumula-se nas mãos, doi-lhe tudo.
Quase todos os dias a vou visitar. No raro dia em que tinha as mãos frias e as minhas estavam quentes, tentei aquecer as dela. Tento reparar nestes detalhes para ver se adivinho o fim. Quando me despeço, passo a minha a mão pela testa dela e digo-lhe para se portar bem que a amo. Ela responde "I love you, too." Talvez amanhã ou depois seja a última vez.