Uma amiga minha russa, que conheci há quatro anos, fala-me sempre do alto nível de educação dos russos, do apreço pela cultura, pela beleza, o estudo da literatura, da arte... É tudo elevado na Rússia e como é que um povo desta suposta sensibilidade se reduz a esta brutalidade passa-me completamente ao lado.
Há cinco anos, passei a passagem de ano no meio de pessoas da ex-USSR. As senhoras de idade soviéticas, em particular, gostam sempre muito da minha cara e naquela festa não foi diferente; claro, que também são grande defensoras do regime soviético, logo as suas preferências não abonam muito a meu favor, mas adiante. Para além de mim, estavam umas 20 pessoas de três gerações diferentes e de vários países: Rússia, Ucrânia, Bielo-Rússia, Geórgia... Toda a gente se entendia em russo, menos eu, que me limito a reconhecer palavras como privyet, spaciba, e pajalsta. Pelo menos, sou uma pessoa educada.
Foi uma noite muito pacífica apesar do copioso consumo de vodka: comeram, cantaram, jogaram jogos--eu também consegui jogar porque algumas coisas tinham a ver com reconhecer músicas e, em anos 80 e 90, sou craque. Eles todos olhavam para mim com admiração por eu me conseguir orientar nos jogos e até cantei uma canção em português e, se me lembro correctamente, foi o "O amor" dos Heróis do Mar, porque o tópico era amor.
Achei que tinha representado bem Portugal junto dos cidadãos da Europa de Leste, mas confesso que de vez em quando olhava para eles e tentava perceber se algum era um espião de Putin. Podia ser uma pequena paranóia minha, depois de crescer a ver filmes como o No Way Out, com o Kevin Costner, mas talvez não fosse exagero meu porque depois viemos a saber que os russos tinham andado a fazer "campanha" pró-Trump.
Nessa viagem, a amiga com quem eu estava tinha-me levado uma semana antes ao monumento da fome-genocídio da Ucrânia, em Washington, D.C., que marca um evento que eu desconhecia até então, mas ela educou-me: desde então os ucranianos têm uma pequena horta onde cultivam comida, como se se preparassem para um evento semelhante ao que aconteceu há quase 90 anos. E eis que chegámos à inevitabilidade histórica, mas desta vez ter uma pequena horta de pouco ou nada serve.
Também não servirá daqui a uns anos, quando a Rússia atacar outra vez. Sim, porque a maior parte dos russos, aquele povo tão educado e sensível, não tem ideia do que se passa e estarão prontos para seguir o próximo lunático quando o seu nível de vida piorar com as sanções a que estão a ser sujeitos. Claro que, se não forem castigados, o resultado é o mesmo porque haverá sempre um lunático que achará por bem tentar a sorte de novo porque não aconteceu nada ao primeiro. Se isto não é um Catch-22 histórico...