Luís Aguiar-Conraria, Fernando Alexandre, Pedro Bação, João Cerejeira, Miguel Portela*
No dia 7 de Setembro, o primeiro-ministro de Portugal comunicou ao país que vai cortar os salários dos trabalhadores portugueses em cerca de 2,8 mil milhões de euros, transferindo grande parte desse corte, 2,3 mil milhões, directamente para as empresas. Esta proposta, que consiste numa redução da taxa social única (TSU) suportada pelas empresas e num aumento da TSU suportada pelos trabalhadores, foi apresentada como uma desvalorização fiscal que promoveria o aumento do emprego e a competitividade da economia portuguesa.
Esta ideia foi recebida com curiosidade por quem estuda economia. Na literatura económica, desvalorização fiscal era, numa primeira fase, sinónimo de subsidiar exportações e taxar importações; mais recentemente, tem sido associada à redução dos impostos à produção em simultâneo com o aumento dos impostos ao consumo. Na proposta do Governo, a quebra de receita resultante da redução das contribuições sociais das empresas era compensada com um aumento das contribuições dos trabalhadores, o que resultava num aumento global da TSU de 34,75% para 36%. Ou seja, procurava-se reduzir os custos salariais aumentando os impostos globais sobre o salário. É legítimo a qualquer economista questionar a eficácia destas medidas. Por isso, esperámos pela fundamentação desta proposta pelo ministro das Finanças, um reputado economista.
No entanto, na sua comunicação, o ministro das Finanças limitou-se a mencionar "estudos" que apontavam para a criação de 50 mil empregos. Se é verdade que a troika nos habituou a este tipo de anúncios, a proposta de transferir mais de 2 mil milhões de euros dos trabalhadores para as empresas referindo apenas estudos anónimos e não escrutináveis não é próprio de uma democracia da Europa Ocidental.
Com consciência cívica, fizemos o que nos competia e o que era possível fazer em quatro dias. Recorremos ao estudo que mais vezes é usado para defender a desvalorização fiscal, um estudo do FMI que analisa econometricamente os efeitos de uma descida da TSU das empresas compensada por uma subida do IVA. Ou seja, ancorámos o nosso trabalho a um estudo que já sabíamos ser favorável à desvalorização fiscal e aplicámo-lo à proposta do Governo. Os nossos resultados não confirmaram os efeitos anunciados pelo Governo. De facto, concluímos que as alterações propostas levam à destruição de emprego. A ancoragem ao estudo do FMI era a melhor forma de defendermos a objectividade do nosso trabalho num tema tão actual e premente. Esta opção não torna o nosso estudo imune a críticas, mas, infelizmente para quem nos ataca, as críticas relevantes aplicam-se também ao estudo do FMI utilizado para defender a desvalorização fiscal.
Sabemos que a economia não é uma ciência exacta e muito menos uma ciência consensual. Abordagens diferentes conduzem muitas vezes a resultados diferentes. O nosso estudo usa um modelo econométrico. Quem usar outros modelos, sejam empíricos ou teóricos, poderá chegar a conclusões diferentes. É isso que ensinamos aos nossos alunos.
Demos uma contribuição para o debate sobre a proposta do Governo, mas são essenciais outras contribuições da Academia Portuguesa. Os investigadores das universidades são pagos com os impostos dos portugueses. Muitos de nós usufruíram do privilégio de ir fazer doutoramentos nas melhores universidades do mundo com bolsas pagas pelos contribuintes. Nesses doutoramentos, adquirimos as capacidades técnicas para estudar estas políticas. As universidades têm de ser espaços de liberdade, sendo fundamental a sua participação no debate público. Os erros de políticas públicas que resultam de uma avaliação incipiente são uma das causas da crise que Portugal enfrenta. Se os académicos não contribuíssem para uma discussão mais rigorosa e informada, num caso em que se anunciava uma transferência de rendimentos de mais de 2 mil milhões de euros, então para que serviria a Academia?
Também do Banco de Portugal, entidade com estatuto de independência perante o Governo, se espera um contributo público. O seu departamento de estudos económicos tem recursos e capacidade técnica para analisar esta e outras propostas alternativas. Quando, no ano passado, se discutiu a descida da TSU das empresas compensada por uma subida do IVA, o Banco de Portugal simulou esta política, num modelo computacional de equilíbrio geral dinâmico, chamado PESSOA. Não seria razoável realizar um estudo semelhante também para este caso, bem como para as outras propostas que estão na mesa?