Desde o início havia algo estranho. Apesar de nos dizerem que tudo estava bem, o choro não era convincente. Mas era oficial, a Ana Rita tinha nascido. O Fernando foi a minha casa buscar a minha sogra e a minha filha mais velha. Eu tive de sair da Clínica por uns breves minutos.
Quando voltei, a Ana Laura, a minha filha mais velha ainda sem três anos completos, veio queixar-se de que médico tinha levado a Ana Rita. Fui ver o que se passava. Os fios que a ligavam diziam-me que algo não estava bem. O médico dizia-me que tinha de estar com ela. De lá não saiu a noite inteira. Eu fiquei a passear entre a minha filha e a sua mãe. Na manhã seguinte, o médico diz-me que a Ritinha tem de seguir para os cuidados de neonatologia do Hospital de Braga. Depois de um abraço, deixo a Sandra na Clínica e vou na ambulância com a minha filha numa incubadora. É bonito ver os carros solidariamente a afastar-se do caminho.
Chegados ao Hospital, com uma eficiência extraordinária, levam a incubadora portátil por aquele edifício antigo e um pouco labiríntico. As pessoas comentavam nos corredores, coitadinho do bebé, tão pequenino; deixem passar o pequenino; coitadinho, Deus queira que sobreviva. Aquelas manifestações de desesperança aumentam o meu sentir. O sentimento de perda apodera-se.
Chegados à unidade de cuidados intensivos da neonatologia, a Rita entrou. Fiquei à porta. Ouço-a chorar enquanto trabalham nela. Volto a casa. Precisava de explicar à Ana Laura o que se passava e por que tinha de me ir embora para estar com a mana. Volto à Clínica, não queriam deixar sair a Sandra, mas ninguém a podia prender. Voltamos ao hospital. Desinfectar, vestir bata, etc. Entramos e vejo a minha filha numa nova incubadora, cheia de tubinhos e fios. Um painel electrónico dá toda a informação: percentagem de oxigénio, batimentos cardíacos, temperatura, etc. Falam connosco. A Rita está entregue. Pergunto por probabilidades. Não nos dão valores, dizem-nos o que joga a favor e o que joga contra. Não fazem promessas. Não dizem para não nos preocuparmos. Não dizem que tudo vai correr bem. Dizem-me que posso passar lá a noite com a Rita mas que terei de a passar numa cadeira, lamentam não ter melhores condições para me acolher. O que podemos fazer? Nada, excepto garantir o fornecimento de leite materno.
Passo as noites com a Rita, sempre que chora, canto-lhe para dentro da incubadora. Ainda hoje lhe canto a mesma música para a acalmar. Passámos as noites assim. Dormir é impossível, as máquinas estão sempre a apitar. E sempre que apitam, lá vai uma diligente enfermeira ver o que se passa. Sempre, não falham nunca.
No dia seguinte, vejo uma agulha espetada no pulmão da Rita. Um alvéolo pulmonar tinha rebentado e era necessário tirar o ar que se tinha alojado junto à pleura. Tinham exagerado na dose de oxigénio. Os dias foram passando. De dia, aquela sala era um festival de mães que iam tirar leite para deixar aos seus bebés. Mamas por todo lado. Eu e a mãe passávamos o tempo com a Ritinha, sem lhe poder tocar e sem saber se ela nos sentia ali. Enganava o medo mandando SMS aos meus amigos lá fora. Descrevia as enfermeiras aos amigos e os enfermeiros às amigas.
Uns dias depois, a Rita saía da zona onde estavam os casos mais difíceis para a zona mais optimista. Uma enfermeira, com ar ultra-eficiente e bastante ríspida, diz-me que não posso lá dormir mais. Podia ir para casa descansar. Nas suas palavras, a Rita tinha dado a volta por cima. Eu insisto em ficar, a enfermeira proíbe-me de lá ficar, que eu precisava de descansar. Tinha, obviamente, razão. Não era só eu, estávamos todos rebentados. Quando a minha mulher voltou à Clínica para tirar os pontos, já estes tinham caído todos.
Quando finalmente teve alta, fomos com a Laura buscar a maninha. Foi a única vez que a Laura entrou naquela unidade de cuidados intensivos. Mais tarde, um ano e meio depois, uma amiga da família, a Manuela, em conversa com a Ana Laura disse que ia rifar a Ritinha, ou algo parecido. A Ana Laura, assustada e protectora, disse logo que não, que não se podia desfazer da irmã mais nova, que se lembrava perfeitamente de a ter ido buscar ao hospital e que, de todos os bebés que lá estavam, a sua Rita era a mais bonita.