quarta-feira, 26 de abril de 2023

Ser livre é...

Antes da mini-crise financeira que assolou os EUA e a Europa há um mês, na conversa semanal com as minhas amigas americanas mencionei que não iria votar em Biden uma segunda vez (talvez se a alternativa a Biden for Trump reconsidere, mas acho improvável que Trump consiga avançar muito). Caiu o Carmo e a Trindade em cima de mim. O Biden é tão bom presidente, está tudo óptimo, o que é que eu poderia apontar de mal ao homem, que na ideia delas era o melhor para o país...

Se o país depende do futuro de um fulano com 80 anos, o país está tramado; se um país com 330 milhões de pessoas não tem centenas, e talvez milhares, que possam ser tão ou melhores do que Biden, então o país entra em colapso daqui a cinco anos porque ele só teria no máximo mais um mandato. Mas deixemos a estatística de lado e passemos ao meu rol de queixas.

A primeira é que não me esqueci que votei nele contrariada porque preferia que tivesse sido outro candidato, ou melhor, eu quero mesmo é uma candidata. Mas as minhas amigas, que são muito feministas e anti-patriarcado, advertem-me que uma mulher não é viável porque não é elegível e o que importa é ganhar. Para mim, ser contra o patriarcado e preferir o Biden a qualquer outro candidado é incongruente.

Quanto ao desempenho dele como presidente, acho-o melhor do que o Trump, mas mesmo assim mau. A saída do Afeganistão foi desastrosa. O pacote fiscal para lidar com a pandemia contribuiu para a aceleração da inflação e o aumento da dívida pública. A questão do acesso das mulheres a cuidados reprodutivos é pior agora do que com o Trump, apesar de Biden ter tido maioria no Congresso--não me venham falar do SCOTUS porque se as coisas andam no SCOTUS é porque os Democratas se recusaram a legislar sempre que tiveram maioria absoluta. A economia tem tido um bom desempenho, mas não considero que seja devido às políticas de Biden. Para além disso, a economia de Trump também foi boa antes da pandemia e a recuperação da pandemia iniciou-se com Trump, Biden apenas apanhou um processo em andamento.

Eu percebo que haja pessoas que olhem para a política e achem que a melhor maneira de servir o país onde vivem é votar sempre no mesmo partido ou nos canditados sugeridos pelo partido, mas na minha cabeça querer que o mesmo partido tenha sempre o poder não é democracia, é ditadura partidária.

Evitei o Zoom semanal durante umas semanas e, quando regressei a conversa tinha mudado para as questões de censura, em especial por causa de um livro que tinha sido banido em algumas escolas. Era uma questão de liberdade de expressão, dizia uma das minhas amigas. Eu achei que não porque havia conteúdo que seria razoável não ter nas escolas, logo há excepções à liberdade de expressão. E depois, o livro foi publicado e pode ser comprado, logo a liberdade de expressão do autor foi respeitada. Enquanto em tentava argumentar que não achava a liberdade de expressão um bom ataque ao sucedido, a minha amiga foi-se embora da conversa.

Afinal, quem sou eu para pensar que sou livre de exprimir a minha opinião e continuar a ter uma audiência?

domingo, 23 de abril de 2023

Ainda o Boaventura

Durante a minha licenciatura em Economia na FEUC, o nome e a pessoa de Boaventura de Sousa Santos apareceu frequentemente. Nos idos anos 90, ele era capaz de ser a estrela não só em termos de sucesso académico, como didático, dado que os seus estudantes gostavam bastante das suas aulas. Houve algumas vezes, em que vi salas de aulas que tinham as mesas fora do sítio, tendo sido configuradas em forma de O quadrado, e soube que tinha sido por causa dele. A ideia, explicou-me uma aluna, era ter uma forma mais egalitária de ensinar, em que o professor não fosse colocado num pedestal a olhar para os alunos sentados. Nós de economia, que tinhamos professores que nos ensinavam de forma tradicional, eramos uns seres menores. Nunca ouvi ninguém dizer que ele se aproveitava das alunas então.

Recordo-me de uma vez ver o BSS passar pela faculdade todo vestido em couro preto, até a boina. Era über-cool, o homem, naquela altura com uns 50 anos. O texto dele "Um Discurso sobre as Ciências Sociais" fazia parte do nosso currículo de Introdução às Ciências Sociais. Infelizmente, nunca consegui ler aquilo. Sempre que tentei, mal passei das primeiras páginas e até é uma coisa que eu tento ler de vez em quando porque trouxe o livro para cá, mas não dá. Quanto às mesas e cadeiras, tê-las alinhadas à frente de um professor que nos ensina de pé, dá perfeitamente para eu aprender. Aliás, nem eu queria ser igual aos meus professores, prefiro pensar que naquela altura eles estavam bastante acima de mim e por isso havia bastante a aprender deles. Mas agora com estas acusações de assédio, não consigo tirar da cabeça que se calhar ele metia as mesas assim para ver as pernas da alunas, dado que a maioria eram mulheres.

Que estas acusações viessem agora à luz não me choca, mas o que me fez cair o queixo foi a carta que ele escreveu, a tal de sete páginas, onde na primeira menciona o "mau comportamento" de uma das investigadoras, que identifica pelo nome. Os processos disciplinares são coisas internas de uma organização e não são informação pública, até porque, por poderem manchar a reputação profissional de alguém e terem consequências a longo prazo, devem ser matidos em sigilo para não dar aso a processos em tribunal. Um processo disciplinar não é uma situação equilibrada, pois a pessoa que está a ser sujeita ao mesmo tem muito menos poder do que a organização. O comportamento de BSS demonstra mesmo isso, ele acha que pode e manda e faz o que lhe dá na telha.

O único factor redentivo do homem é que as suas alunas finalmente interiorizaram o que ele ensinou e fizeram-lhe frente.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Entretenimento

Interrompo o entretenimento nacional de decidir onde será o próximo aeroporto através de consulta pública -- ou será concurso de popularidade do governo?, talvez um ersatz de eleições dado que hoje em dia as sondagens já não são tão fidedignas e, para além disso, já temos vasta experiência de que estudos de benefício-custo para informar obras públicas durante governos socialistas valem menos do que papel higiénico -- para vos informar de uma mini-série muito interessante que está disponível na Netflix, que se chama Transatlantic. O tema é o trabalho de Varian Fry em França para salvar pessoas durante a Segunda Grande Guerra Mundial. Foi através dele que grandes personalidades intelectuais conseguiram escapar aos nazis, como André Breton, Max Ernst, Hannah Arendt, Marc Chagall, etc.

É mesmo entretenimento, dado que a história é ficionalizada, apesar de ter algumas partes que são baseadas em factos históricos e as personagens serem baseadas em pessoas reais, mas as relações entre elas serem ficionalizadas. A Netflix disponibilizou um pequeno documentário sobre a produção da série que vale a pena ver também.

Alguns pontos interessantes é que a série critica as grandes potências de então e faz alguma equivalência com o que se passa actualmente em termos de política de refugiados na Europa e no mundo. Depois eu não conhecia a história de Varian Fry, nem de Mary Jayne Gold, mas já estive a ver uma entrevista dela para a história oral do U.S. Holocaust Memorial Museum e fiquei mais educada acerca do assunto.

Finalmente, Lisboa e Portugal saem com uma reputação bastante boa, dado que Portugal não só não é criticado, como é visto como um porto seguro numa altura bastante conturbada da história mundial. Claro que nós portugueses sabemos a verdade de que o regime tinha bastante simpatia para com os alemães. Que o diga a família de Aristide de Sousa Mendes, cuja história daria uma óptima série da Netflix, apesar de já existir um filme menor sobre o assunto. Estima-se que Aristides de Sousa Mendes tenha salvado umas 30 mil almas. Varian Fry salvou cerca de 2000 e Oskar Schindler, cuja história inspirou o filme do Spielberg, umas 1300. Parece que o tratamento cinematográfico é inversamente proporcional ao número de sobreviventes.