domingo, 20 de janeiro de 2013

As minhas circunstâncias


A minha geração cresceu no pós-25 de Abril, isto é, num dos períodos de maior transformação e desenvolvimento da história de Portugal. Hoje, quando o desemprego jovem atinge valores estratosféricos e tantos têm de deixar o país, penso muitas vezes nas oportunidades que Portugal me proporcionou.

Nasci em 1972 na Gafanha da Nazaré, mas vivi, a partir de 1976, na Praia de Quiaios, uma pequena povoação, situada a 12km da Figueira da Foz, na bela encosta Norte da Serra da Boa Viagem, que se resumia na altura a alguns ‘palheiros’ e a meia dúzia de casas de férias. Fiz a escola primária na aldeia da Murtinheira com professoras que faltavam muito e que davam aulas em simultâneo aos cerca de 20 alunos que frequentavam as quatro classes. As ruas eram de terra batida, a eletricidade faltava frequentemente, a televisão via-se com muitas interferências, não existiam infraestruturas de saneamento e para a distribuição de água. No final da década de 1970 iniciou-se a construção de novas habitações, que ao longo dos anos seguintes completariam os rectângulos que organizaram o crescimento de um dos locais de veraneio da classe média de cidades próximas como Coimbra e Viseu. De facto, a Praia de Quiaios cresceu com o crescimento da classe média.

Frequentei a Telescola de Quiaios (a cerca de 3km da Praia de Quiaios), que para a generalidade dos meus colegas foi o momento que antecedeu a entrada no mercado de trabalho, em Portugal ou no estrangeiro – apenas uma colega minha do 6º ano concluiria o ensino superior. Entre o 7º e o 12º anos estudei na Escola Dr. Joaquim de Carvalho na Figueira da Foz. A biblioteca foi o que na altura mais me impressionou – a biblioteca ambulante da Gulbenkian chegava a Quiaios quase sem livros – e, nos primeiros anos, era lá que passava a maior parte dos intervalos e dos chamados ‘feriados’, que eram muitos.

A partir de meados da década de 1980 vieram as placas azuis da CEE a anunciar o saneamento, a rede de água e alguns melhoramentos (e também alguns desarranjos) urbanísticos. Apareceram também vários cafés e restaurantes, onde, com muitos dos meus amigos, trabalhei desde as férias de Verão de 1986 até terminar a licenciatura em 1995. Neste período passei de cavaquista entusiasta a cavaquista desiludido e acabei a votar em António Guterres.

Em 1990, tal como o meu irmão mais velho dois anos antes, entrei no curso de Economia da Universidade de Coimbra. O objectivo de vida dos meus pais, que têm a 4ª classe, seria cumprido uns anos mais tarde quando também os meus dois irmãos mais novos concluíram um curso superior. Foi o investimento da vida dos meus pais. Apesar do meu irmão mais novo ter emigrado recentemente para Angola e o outro andar também a ponderar seguir esse ou outro caminho que o leve para fora de Portugal, o investimento dos meus pais teve ainda assim um bom retorno.
  
Quando terminei o curso em 1995 fui selecionado para trabalhar na SONAE, com um salário inicial de 150 contos (750 euros) – valor não corrigido para as taxas de inflação. No entanto, a perspectiva, que se confirmou, de uma bolsa da então JNICT para realizar o mestrado levou-me a optar por continuar a estudar. No ano seguinte, concorri a uma de seis posições para assistente no Departamento de Economia da Universidade do Minho – diziam-me que estavam a fazer aí um forte investimento e que a Universidade tinha grande potencial. Mais uma vez, as expectativas se cumpriram. Em boa hora entrei na carreira universitária: para além dos aumentos salariais anuais, nessa altura generosos, beneficiei ainda de um aumento salarial de 25%, distribuído por vários anos, resultante do acordo estabelecido em 1995 entre os sindicatos e a então Ministra da Educação Manuela Ferreira Leite. E continuo, como no início, todos os dias motivado para trabalhar nos projectos da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho. 

Acabei o mestrado em 1998 e, em Setembro de 1999, parti para Londres para fazer o doutoramento, onde fiquei durante 3 anos e meio, sem ter de dar aulas e com o salário pago na íntegra pela Universidade do Minho, a que se somava um suplemento de bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Já nessa altura tinha consciência das condições excepcionais que Portugal me proporcionava.

Em 2003 regressei à Universidade do Minho, na categoria de professor auxiliar, a que correspondia um salário bruto superior a 3000 euros e líquido de cerca de 2000 euros. Hoje, passados quase dez anos, mesmo tendo entretanto sido promovido a professor associado, continuo a auferir um salário muito semelhante, mas que me continua a colocar no topo da distribuição salarial em Portugal e que não compara mal com o salário recebido pelos meus colegas europeus. E tenho um contrato que me garante emprego para o resto da vida.
   
Olhando em perspectiva, quando hoje observo as circunstâncias dos meus alunos, em particular as que enfrentam no mercado de trabalho, não consigo deixar de pensar que eu e a minha geração fomos, apesar de tudo, afortunados: nunca tantos tinham tido tantas oportunidades em Portugal. 

12 comentários:

  1. Excelente Fernando. Os teus 40 anos de história não são muito diferentes dos meus, com diferença que enquanto estavas no sector do turismo, eu fazia uns biscates nas férias no têxtil. Por coincidência, ou quis assim o destino, parece que o lugar que te ofereceram na SONAE era para me substituir: uns meses antes tinha saído da SONAE para a UM. Enfim, estávamos condenados a cruzarmo-nos algures. Ainda bem que foi na UM! Baden Powell dizia que a nossa tarefa no mundo era deixá-lo melhor do que quando aqui chegámos. Oxalá o consigamos!

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  2. ainda bem que nos cruzámos, também na Praia de Quiaios. É um bom lema: deixar o mundo melhor do que o encontrámos.

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    1. No meu caso isso é fácil. Basta eu deixar o Mundo para ele ficar um sítio melhor para se viver.

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  3. achas que és assim tão importante para se notar a diferença no mundo? mas o meu mundo ficaria pior!

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    1. Muito bom texto, Fernando, e cheio de referências que me dizem tanto!
      Não seria capaz de te imaginar como um produto da Telescola!
      No meu caso, creio que fui o único (naquele ano) a sair da escola primária de S. Silvestre para a Silva Gaio em Coimbra, junto ao Estádio Universitário. Ainda hoje me pergunto sobre se ganhei ou perdi com isso, considerando o que foi aquela escola!

      Abraço,

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    2. Nem por um momento duvido da minha importância no Mundo.

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    3. O Anónimo das 21:44 sou eu, o Gaspar...

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  4. Bem notado, a questao das oportunidades, mas como e' visivel no teu caso, e' tambem uma questao de as saber aproveitar. Enquanto a malta ia para a praia, tu estavas atras do balcao no Verao; enquanto os putos jogavam a bola ou iam aos pardais, tu ias para a biblioteca (embora note-se que o Fernando e' tambem um craque no futebol!); enquanto muitos colegas se ficavam pela terrinha, tu foste para Londres com grandes sacrificios pessoais. Ou seja, nao basta ter as condicoes para singrar, e' preciso tambem vontade e empenho. Por vezes creio que, mais do que modelos e tecnicas que possamos ensinar, e' esse espirito que e' crucial passar aos nossos alunos.
    Grande abraco a todos, inclusive a esse tipo que nao e' deste mundo!
    Vasco

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  5. Caro colega,

    "E tenho um contrato que me garante emprego para o resto da vida", duvido e não sei. Afinal, também estamos sujeitos às mesmas leis da mobilidade do resto da função pública e nada garante a eternidade das nossas cadeiras ou das nossas carreiras. E, apesar de tudo, e dos privilégios de que aparentemente gozamos, não seremos das classes mais fustigadas em prol do saneamento das contas públicas?

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    1. Desculpe, mas fustigados em comparação com quê? Com quem não arranja trabalho (seja no público ou no privado)?

      O Fernando Alexandre tem toda a razão - o contrato (até ver) garante emprego até ao final da vida, com a agravante de, na grande maioria dos casos, o fazer sem qualquer ligação com o desempenho efectivo do contratado.

      De regresso ao mundo académico, a geração que se segiu à descrita no post (e a geração actual) está efectivamente condenada a exílio fora do país, uma vez que a sua integração nas nossas Academias estará sempre limitada por dois factores: a inexistência de vagas de "base" (a nível de auxiliar ou adjunto) e a absoluta e repugnante (porque não outra palavra) endogamia académica que assola as nossas Universidades, a nível das carreiras intermédias e de topo.

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  6. Numa discussão há algumas semanas com o Ministro da Educação, ele dizia-se consciente (e bastante indignado) com a endogamia académica que assola as universidades portuguesas. O problema é que, devido à falta de vagas, qualquer medida que visasse alterar a situação demoraria 10 a 20 anos a ter efeitos significativos, e isto assumindo que o próximo ministro não mudasse de ideias e voltasse a por tudo como estava antes. Boas alternativas precisam-se. Senão ficamos todos cá fora.

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