O longo processo de venda dos terrenos da antiga feira popular, em Entrecampos, intriga-me. É defeito profissional. E fico mais intrigado a cada notícia que leio nos jornais.
Em 2015, saiu um artigo que dizia que os potenciais participantes no leilão organizado pela Câmara Municipal de Lisboa ameaçavam – publicamente - não participar por causa do “excessivo” preço mínimo exigido. Nessa altura, escrevi aqui que isso me soava a (clássica) estratégia de condicionar o vendedor. Se todos os potenciais compradores anunciarem que não participam num processo de venda a menos que o vendedor mude as condições, o poder do vendedor fica aparentemente reduzido: ou aceita o que os compradores querem, ou arrisca-se a não ter participação no leilão. Claro que o vendedor podia – e devia – ter seguido em frente com o processo de venda, esperando que pelo menos um dos compradores mandasse às urtigas o que disse e viesse na mesma ao leilão. Isso – mandar às urtigas o que disse anteriormente – não é, pelo menos em teoria, implausível: se todos os compradores disserem que se abstêm de participar, um deles poderá ter o incentivo de, à socapa, vir à mesma ao leilão e comprar os terrenos a preço da chuva. A questão é que Portugal é um país pequeno, onde existe um número muito reduzido de empresas que participam sucessivamente neste tipo de compras, e de vendas, ao Estado. Também por causa disso, nenhuma dessas empresas deverá terá grande interesse em dar parte de fraca num processo de venda, deitando a perder o poder negociar conjunto que, de outro modo, poderá continuar a beneficiar com as outras empresas do setor.
Existem no entanto várias formas de o vendedor aumentar o número de potenciais compradores, reduzindo assim o poder negociar dos suspeitos dos costume. Uma questão maior é que o terreno é enorme, e está numa zona central da cidade. É provável que apenas empresas de grande dimensão estejam interessadas em comprar este terreno. Uma compra deste tipo custa muito dinheiro, e exige meios de financiamento próprios, ou acesso privilegiado aos mercados financeiros. Além disso, a posterior construção nos terrenos e a venda parcelar, em apartamentos ou escritórios, exige escala, quer na construção, quer no retalho. Claro que vários potenciais compradores pequenos podem tentar coordenar-se e vir juntos ao leilão, cada um ficando depois com uma parte do todo. Mas esse tipo de acordos é de difícil concretização. Desde a definição de quem paga o quê, até ao acordo do tipo de construção que cada um deles poderá fazer, o mais provável é que nunca saia das intenções. Perante isto, o vendedor pode optar por vender parcelarmente os terrenos. Em vez de vender o bloco como objeto único, divide-o em vários lotes e disponibiliza-los simultanemanete no leilão. Assim, na eventualidade de existirem vários compradores pequenos interessados em lotes individuais, estes não sofrerão do problema de terem de coordenar a sua participação conjunta. Convencendo-os a participar, aumentava-se a concorrência no leilão e diminua-se o poder negociar dos grandes compradores em impor as condições da venda. Aparentemente, mais de dois anos depois, parece ser precisamente intenção da câmara dividir o terreno em lotes.
O curioso da notícia, no entanto, é, tal como em 2015, aparentar ter sido escrita sob o ponto de vista dos tais suspeitos dos costume. Novamente, é dito que grandes compradores estão pouco interessados em vir ao leilão, nas condições sugeridas pela Câmara.
Ora isso não faz nenhum sentido. É perfeitamente natural que as grandes empresas só queiram vir ao leilão se conseguirem comprar o terreno na sua totalidade, não querendo arriscar sair de lá com alguns, mas não todos, os lotes disponíveis. Por exemplo, poderão querer construir um edifício que ocuparia três dos lotes, pelo que ganhar um ou dois lotes não lhe serviria de nada. Mas, num leilão bem desenhado – e isso é crucial aqui -, nada os impedirá de licitar pela totalidade ou pelo número de lotes que quiserem, sem risco de ganhar menos do que isso. Isso faz-se permitindo licitações em pacote. Uma licitação em pacote é uma licitação combinada, ou conjunta, por um determinado número de lotes. Se sair vencedora, quem a fez ganha todos os lotes incluídos no pacote. Se não for vencedora (porque a soma das licitações feitas sobre cada lote individual é superior), o licitante não ganha nada. Não há – novamente, num leilão bem desenhado – qualquer risco de um licitante ganhar apenas um número de lotes para os quais não tem valor. E, assim sendo, não há nenhuma razão para os grandes compradores não virem ao leilão.
Novamente, parece apenas conversa de quem quer tentar convencer a Câmara a mudar as condições do leilão para benefício próprio. É apenas pena que os jornalistas não consigam ver para além disso. Mas já seria uma tragédia se a Câmara também não conseguisse.