domingo, 25 de março de 2018

O acto de matar

The Act of Killing (2012) de Joshua Oppenheimer e de um anónimo é o documentário mais perturbante que vi até hoje. Oppenheimer filma encenações dos próprios carrascos das execuções que fizeram 50 anos antes na Indonésia. Em 1965-1966, o general Shuarto, apoiado pelos EUA, comandou um golpe para derrubar os comunistas. Fala-se no massacre de 1 milhão de comunistas, muitos de origem chinesa. Os carrascos são hoje heróis nacionais e muitos estão no poder. Mataram com as próprias mãos centenas e centenas de comunistas. Não se vê qualquer arrependimento do que fizeram. Estavam a salvar o país e hoje fariam tudo na mesma. O regime continua, aliás, a louvá-los e a homenageá-los sem cessar. Muitos não escondem inclusive o prazer que as matanças lhes davam. Brincam com o sofrimento das vítimas. A personagem principal, Anwar Congo, um gangster (significa homem livre, dizem eles amiúde) muito temido nessa época, no fim diz sentir-se um bocado mal. As encenações das execuções trouxeram-lhe de volta os mortos e esse não era um sentimento agradável para ele. Ao mesmo tempo, muitos desses carrascos parecem pessoas simples, normais, alegres, gostam de cantar e dançar. O que me perturbou foi perceber que, vivessem eles noutro contexto, e teriam sido, provavelmente, apenas uns tipos porreiros, bons pais de família e cidadãos exemplares.
Foi isto que Hannah Arendt percebeu quando, no início dos anos 60, assistiu ao julgamento de “Eichmann em Jerusalém”. Eichmann era um homem bastante inteligente e, ao mesmo tempo, profundamente estúpido na medida em que não era capaz de perceber o que se passava com as pessoas à sua volta. O seu pensamento reduzia-se a clichés, que são o conforto do mal como escreveria Arendt. A banalidade do mal é isso. A suspensão do pensamento, a superficialidade. A mente povoada de lugares-comuns torna os seres humanos mais propensos a ceder ao mal. Eichmann era um tipo vulgar, como muitos que conhecemos. Não era um ser demoníaco, como muitos o preferiam pintar. Arendt descobriu uma coisa terrível. Uma das origens do mal é a superficialidade, a estupidez e os lugares-comuns que lhe estão atrelados. À época, essa "descoberta" perturbou imenso, em especial a comunidade judaica, e Arendt pagou um preço elevado. Foi ostracizada. Quase 60 anos depois, a forte intuição de Arendt continua a perturbar. The Act of Killing é uma prova disso.




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