terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Impugnar ou não impugnar

Antes de mais, Bom Ano de 2020 a todos. Gostaria de vos falar sobre o processo de impugnação do Presidente Trump, é um post um bocado longo e tentei relatar os factos e também dar alguma informação acerca de como a as coisas funcionam nos EUA e as pessoas pensam. Os americanos são bastante estratégicos e gostam de seguir processos. Também há bastante fé na forma como as diferentes instituições funcionam. Um dia, quando Donal Trump sair da presidência, iremos olhar para trás e achar que tudo isto obedece a uma lógica que nesta altura não é muito óbvia.

Depois da votação dos artigos de impugnação de Donald Trump na Câmara dos Representantes, Mitch McConnell, o líder da maioria republicana no Senado comprometeu-se a trabalhar com a Casa Branca no sentido de apressar o julgamento de impugnação no Senado e de ilibar o Presidente Trump dos dois artigos de que é acusado: o primeiro de abuso de poder e o segundo de obstrução do Congresso. Esta atitude levantou várias dúvidas acerca da legitimidade do processo, pois os senadores têm de jurar serem imparciais, de acordo com as regras de impugnação do Senado:
"I solemnly swear (or affirm, as the case may be,) that in all things appertaining to the trial of the impeachment of ____ _____, now pending, I will do impartial justice according to the Constitution and laws: so help me God.

Neste processo apressado, nenhumas testemunhas seriam chamadas, nem provas seriam fornecidas para defender a legitimidade da conduta do Presidente Trump. Aqui vale a pena lembrar que no processo de impugnação não há ônus da prova, pois a Constituição americana é omissa, e quem tem poder para definir grande parte das regras de impugnação é o Congresso; o julgamento é da responsabilidade do Senado. Já à Câmara de Representantes cabe o papel de recolher provas e definir uma acusação.

A forma como as tarefas estão divididas entre a Câmara de Representantes e o Senado deriva em parte da duração do mandato dos membros do Congresso. Como os Senadores (há 100 Senadores no Congresso, dois por cada estado) têm mandatos de seis anos, pressupõe-se que são mais independentes e têm melhores condições de enfrentar um Presidente, até porque em cada eleição, que ocorre em anos pares, apenas cerca de 1/3 do Senado está sujeito a eleições pois os termos estão desencontrados. Já os 435 membros da Câmara de Representantes têm mandatos de dois anos, o que os pode fragilizar politicamente.

O julgamento de impuganação no Senado é presidido pelo Chief Justice do Supreme Court of the United States, SCOTUS, que é John Roberts, que foi nomeado por George W. Bush. Os juízes do SCOTUS têm termos ilimitados e como tal também se presume estarem distanciados de interferências políticas, se bem que tradicionalmente se associe os juízes ao partido do presidente que os nomeou. Há também que ter em conta que muitas vezes os juízes do SCOTUS têm tendência a tornarem-se mais liberais com o passar do tempo. Até agora, John Roberts tem tentado manter o SCOTUS à parte das guerras políticas. Não é claro o que Roberts faria perante um julgamento à McConnell.

A forma como o processo de impugnação é implementado nos EUA tenta minimizar processos frívolos e maximizar que o processo defenda o que é bom para o país e não para um Presidente ou partido. Por isso, Trump é apenas o quarto presidente a enfrentar um processo de impugnação e o terceiro a ter um voto de impugnação aprovado na Casa dos Representantes. Como os processos de impugnação são tão raros e cabe ao Congresso defini-los, é muito difícil prever a estratégia que será seguida para cada um.

A estratégia de McConnell de se recusar a defender o Presidente durante o julgamento é bastante criativa, mas ele conhece profundamente a história processual do Senado e os seus limites. Um desses limites é a questão de precedente e tanto McConnell, como Nancy Pelosi, a líder da maioria democrata na Câmara dos Representantes, percebem que, ao iniciar o processo de impugnação, as escolhas que fazem definirão regras para futuros presidentes. Por outro lado, desde os ataques de 2001, houve uma expansão dos poderes do Presidente, em detrimento dos poderes do Congresso, o que permite a McConnell justificar tolerar comportamentos tão exagerados do Presidente.

Como nunca nenhum presidente foi retirado do poder através de um processo de impugnação -- Richard Nixon demitiu-se antes de haver votação na Câmara de Representantes dos artigos de impugnação, Bill Clinton e Andrew Johnson, apesar de impugnados na Câmara dos Representantes, foram ambos absolvidos pelo Senado e, como tal, não foram retirados da presidência -- não é claro o que acontece a um presidente depois de um voto de condenação no Senado. Depois dos votos no Senado que houve, que terminaram em ilibações, ambos durante primeiros mandatos, Andrew Johnson e Bill Clinton concorreram a segundos mandatos, mas Johnson perdeu as primárias e Clinton ganhou a eleição. Johnson saiu da presidência em 1869, numa altura em que grande parte da população nem direito de voto tinha, logo o caso de Clinton presume-se mais adequado em termos de comparação.

Um dos argumentos que Mitch McConnell usou para dissuadir os Democratas de tentar impugnar Donald Trump foi o da vitória de Clinton, pois os Republicanos fizeram a vida negra a Clinton e este apenas ganhou a simpatia do eleitorado e mesmo agora não é considerado um mau Presidente: dos 44 presidentes que os EUA tiveram, um inquérito recente de cientistas políticos dá a Clinton o décimo-terceiro lugar. Por este raciocínio, ao vitimizarem Donald Trump os Domocratas correm o risco de apenas mobilizarem a base de apoio do presidente. Esta visão também foi invocada por Nancy Pelosi para desencorajar os Democratas de iniciar um processo de impugnação.

O que mudou a opinião de Nancy Pelosi foi Trump ter tentado interferir nas eleições pedindo ajuda a uma potência estrangeira. Se as eleições não são justas, então Trump tem vantagem e torna-se mais difícil ao candidato democrata ganhar. Iniciar um processo de impugnação serve, então, para os Democratas não só terem um mecanismo oficial de descoberta do que Trump fez, como para avisar as pessoas que rodeiam Trump que se derem um passo em falso, podem ir para a prisão, tal como aconteceu com algumas das pessoas que trabalharam para Trump nas eleições de 2016 e depois foram investigadas por Robert Mueller. Por exemplo, durante as audiências na Câmara dos Representantes, Gordon Sondland, amigo pessoal de Donald Trump e Embaixador dos EUA junto da UE, emendou o seu testemunho perante a Câmara de Representantes.

A estratégia de Mitch McConnell para o julgmento no Senado revela que não tinha mudado de opinião e continuava a achar que antagonizar o Presidente Trump não era recomendável e o melhor era minimizar a importância do processo de impugnação, pois, como já afirmou, a forma mais fácil de retirar Donald Trump da presidência é por via de eleições -- uma outra vantagem é que assim que perde as eleições, o Presidente fica com os poderes enfraquecidos e o processo de transição de poder é bastante claro dado que já aconteceu tantas vezes.

Penso que se torna óbvio que McConnell não quer ajudar Trump a ganhar um segundo mandato, pois se o Congresso não colocar obstáculos a Trump, Trump não pode acusar o Congresso de o ter prejudicado. McConnell também não acha que o que Trump fez para deturpar as eleições seja suficiente para lhe dar vantagem, pois é muito difícil influenciar as eleições e enquanto Trump anda focado em Joe Biden, os Democratas têm outros candidatos que são viáveis. Finalmente, uma ausência de defesa no julgamento permitiria aos Republicanos ilibar Trump dizendo apenas que achavam o processo injustificado, em vez de terem de justificar a conduta do Presidente ou de a ilibarem.

Perante a recusa de McConnell de ouvir testemunhas e reunir provas, duas opções de como os Democratas deviam prosseguir com o processo de impugnação foram sugeridas por dois professores de Direito Constitucional em Harvard:
  1. Lawrence Tribe defende que a Câmara dos Representantes não tem de apresentar os artigos de impugnação no Senado e deve continuar a reunir provas e até pode vir a apresentar mais artigos de impugnação;
  2. Noah Feldman, por outro lado, defende que uma impugnação é um processo conjunto da Câmara dos Representantes e do Senado e se os artigos não forem apresentados ao Senado não há impugnação.
Era mais ou menos neste ponto do processo de impugnação que estávamos na Quinta-feira, com a Câmara dos REpresentantes à espera que o Senado definisse as regras do julgamento para ver se entregavam ou não os artigos ao Senado, mas na Sexta-feira acordámos com a notícia da morte do General Suleimani, que era considerado a segunda figura mais importante do Irão e possivelmente um seu futuro líder, num ataque ordenado por Donald Trump, mas que foi sugerido pelo Pentágono para tornar as outras opções do leque de possíveis acções mais prováveis (esta opção já tinha sido sugerida a Bush e Obama, mas ambos a recusaram por acharem demasiado arriscada). Este ataque não faz sentido para a política externa dos EUA no Médio Oriente, pois o Irão é uma das forças que combate o Estado Islâmico e, apesar de Donald Trump afirmar que o Estado Islâmico está derrotado, não está completamente eliminado. Para além disso, é um ataque tão desproporcional que é difícil prever uma reacção dos iranianos. Também não faz sentido dada a situação interna do Irão. Em meados de Novembro, surgiram protestos anti-regime, durante os quais se diz terem sido mortas mais de 1500 pessoas pelas forças militares iranianas. Como o Irão não permite a presença de jornalistas estrangeiros e durante os protestos cortou o serviço de Internet, demorou algumas semanas até a comunidade internacional ter conhecimento destas circunstâncias. Desde Sexta-feira, a morte de Suleimani tem dominado as notícias, mas hoje John Bolton, o anterior Secretary of State National Security Adviser dos EUA, que foi demitido por Trump, prontificou-se a testemunhar no julgamento de impugnação de Donald Trump, coisa a que se tinha recusado até agora. Antes de ser Secretary of State, Bolton defendeu várias vezes atacar o Irão e, há três dias, via Twitter, deu os parabéns a quem esteve envolvido no ataque. Decerto que este ataque o pesou na sua mudança de decisão, mas também ficámos a saber durante o testemunho de Fiona Hill perante a Câmara dos Representantes que John Bolton não queria ser envolvido na questão da Ucrânia.

No Senado, na Sexta-feira, McConnell continuava a pedir aos Democratas para não antagonizarem o Presidente.


2 comentários:

  1. Obrigado pelos esclarecimento em relação à política Norte Americana,pois que por cá em Portugal,na generalidade não têmos um unico comentador à altura.

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    1. Obrigada. Uma das grandes diferenças que noto nos americanos é que as palavras que usam são muito importantes porque têm consequências legais. Em Portugal, não acho que haja essa sensibilidade.

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