Li um livro inteiro a semana passada, o que é bastante surpreendente, dado que leio muito devagar. Era um romance de cordel, ou lá como se chama, e li porque uma amiga minha ficou tão perturbada com o final do livro, que eu fiquei curiosa. De tão entusiasmada que ela ficou, leu-o em cinco horas, de um dia para o outro. Não contabilizei as minhas, mas foram muitas mais. Por várias vezes, pensei em que raio estava a ler. Para quê tantas páginas para dizer tão pouco, um crime do qual também me podem acusar, mas perseverei para ver se acabava aquilo e matava a minha curiosidade.
Agora constato que os outros que leio em paralelo e levo imensas semanas, até meses e anos, a ler vão lentamente porque não quero que acabem -- é como os sacos de bombons que o meu tio me trazia da Holanda e que eu auto-racionava disciplinàdamente: só podia comer um depois do almoço e outro depois do jantar. Isto durava até a minha irmã comer os dela e prosseguir com os meus, menos de 48 horas, portanto.
Contrariamente aos bombons, os meus livros são de difícil digestão para os outros e até o meu preferido, uma coisita pequena (A Devil in Paradise de Henry Miller), a minha amiga não consegue ler, apesar de ter tentado. Não tem interesse para ela, confessa, e eu digo-lhe que alguns daqueles parágrafos são tão lindos que uma pessoa fica ali perdida especada a admirá-los. É por isso que eu sou lenta.
Nas mais de 370 páginas deste livro, encontrei apenas um excerto que achei memorável e prossegui a sublinhá-lo:
"I think about how sometimes, no matter how convinced you are that your life will turn out a certain way, all that certainty can be washed away with a simple change in tide."
~ Colleen Hoover, It Ends with Us
O fim deste livro é, para mim, satisfatório e a história acaba por ser uma espécie de fábula de moralidade sobre pessoas sem-abrigo e violência doméstica. Não, não deixem os vossos preconceitos iludir-vos: o sem-abrigo é na realidade o cavaleiro da história e o príncipe acaba por se tornar em sapo, apesar dos muitos beijos da heroína e parece que até eram beijos bons, daqueles molhados, cheios de emoção. Um desperdício.
Quando cheguei à página 208, escrevi um SMS à minha amiga a dizer onde estava e o facto de não perceber que coisa estava a ler. Páginas antes, houve um incidente violento entre a princesa e o príncipe, que me pareceu um bocado forçado na história, mas não dava para perceber se tinha sido acidental ou ilustrativo de um comportamento endémico no príncipe.
Umas páginas mais tarde, o tal príncipe disse à heroína "I'm so excited to be your husband, I could piss my damn pants." e isto, na minha cabeça, é um momento "Foda-se!" Enviei mais outra mensagem: "I could never marry anyone who spoke like that about marrying me. I would not even date them -- too vulgar..." Tenho de inserir uma declaração de interesses aqui: uma vez saí com uma pessoa que a primeira vez que falámos ao telefone atendeu com "Hey, babe!" e digamos que foi o princípio do fim.
Bem, mas então qual a originalidade de tudo isto? A autora inseriu episódios de violência doméstica na história que tinham acontecido entre a mãe e o pai. O primeiro, o tal que achei forçado, foi um desses. Há uma certa duplicidade, mas a heroína começa logo a suspeitar que, se calhar, são o início de um ciclo, o que se veio a demonstrar.
O final é o divórcio, decidido após o nascimento da filha, em que há uma conversa entre o casal e a esposa diz ao marido que quer o divórcio. Para justificar esta escolha, ela pergunta ao marido o que faria se aquilo tivesse acontecido à filha. Ele admite que, um dia, se a filha lhe relatasse que tinha um marido que a tratasse assim, ele a aconselharia a separar-se. E foi esta conversa que incomodou a minha amiga porque ela achava que estes dois se amavam, logo deveriam ter ficado juntos -- o tal final feliz à americana.
Do meu ponto de vista, o final representa uma reabilitação da imagem do pai da autora, o tal que era violento com a mãe e que chegou a ter conversas com a filha acerca do porquê da violência -- ele era alcoólico. Os episódios foram de tal forma traumáticos que, quando a autora se ia casar, disse ao pai que seria o padrasto a acompanhá-la ao altar, em vez do pai. O pai concordou e disse que achava que era justo, dado que o padrasto tinha verdadeiramente assumido o papel de pai, em todos os aspectos.
Fica-nos então que estas pessoas que cometem actos maus podem também cometer actos bons e que os actos em si são mais o produto do contexto, do que da natureza das pessoas. Nesse caso, as vítimas têm de ter a coragem de se afastar dos agressores. É uma ideia provocadora, mas nem sempre exequível e nem sequer garantia de que possa haver final feliz. Muitas vítimas que se afastam não sobrevivem.