segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Assistência

  “When you part from your friend, you grieve 
not;
    For what you love most in [her] may be 
clearer in [her] absence, as the mountain to the
climber is clearer from the plain.” 

   ~ Kahlil Gibran, “The Prophet”

Ontem assisti a uma morte. Não sei bem o que sinto, não é tristeza, nem propriamente um vazio, apenas que estive presente até ao fim. Já esperávamos que a mãe da minha vizinha viesse a falecer, mas não sendo da família, não contava acompanhar o processo tão de perto. Só que não é propriamente verdade que não seja da família porque logo no início, quando conheci a senhora, ela perguntou-me acerca da minha família. Quando lhe disse que não tinha família nos EUA (pelo menos não de sangue), imediatamente me respondeu, mal me conhecendo, que daí para a frente a família dela seria a minha família. E foi assim que fui adoptada por mais uma família americana.

Durante quase dois anos, acompanhei-a de perto e tentei estar presente. No que me foi possível, prestei a minha ajuda: fiz-lhe companhia, conversei com ela, joguei jogos, tentei fazê-la sorrir usando humor, que ela apreciava muito, cozinhei para ela, etc. Ontei, segurei-lhe a mão, fiz-lhe festas no braço, e assisti à sua etapa final. A minha vizinha, que é a sua filha mais nova, estava do outro lado, ajudando-a. A filha mais velha, do mesmo lado que eu, tentava comfortá-la, segurando-lhe a cabeça, beijando-lhe a testa, e conversando com ela, dizendo-lhe que a amávamos.

Antes da minha visita, levei o Julian a passear e comecei a ouvir o álbum Aun, de Christian Fennesz, cuja música me tinha acompanhado noutras perdas. Durante o passeio telefonei à minha vizinha para ver como estavam as coisas. Não muito bem, disse-me, e dirigi-me a casa dela assim que terminei. A mãe estava com os olhos abertos, respirando com dificuldade. Tentei fazer-lhe festas e conversar com ela: estava muito frio na rua e as minhas mãos estavam frias, só lhe podia tocar sobre o cobertor, expliquei. Sentei-me numa cadeira ao lado dela e conversei com as filhas e até foi animado.

Há dias, noutro passeio com o Julian, encontrámos um porco preto enorme no jardim de um vizinho: estava deitado nuns cobertores e até tinha uma taça de comida. Era tão grande que pensei que aquilo era muito bacon, contava eu à irmã da minha vizinha, que não acreditava porque não é legal ter animais agrícolas dentro da cidade. Mas estava lá, eu até tinha tirado duas fotografias, afirmei. Então mostra-me, dizia ela, e eu apresentei as minhas provas e ela continuou admirada, mas convencida. Depois falámos de viagens que eu tinha planeadas e de outros assuntos que já se remeteram ao esquecimento. 

A irmã da minha vizinha entrava e saía do quarto, e houve alguns momentos de silêncio. No ar, senti um odor estranho, que me era desconhecido. Já há muito que não cheirava algo que me incomodasse tanto; quando era miúda era extremamente sensível a odores, mesmo perfumes agradáveis, mas fortes, causavam-me vómitos. Aquilo que cheirei ontem era quase desse calibre; era a úlcera de Kennedy: a pele, que é um órgão, começava a falhar.

Enquanto eu e a minha vizinha estávamos sozinhas no quarto, a mãe deu dois suspiros repentinos e levantámo-nos para a assistir. O coração quase que não se ouvia e apenas respirou mais umas três vezes, já a filha mais velha tinha regressado. Nós apenas assistimos e tentámos dar todo o conforto possível. Assistir à morte de alguém deve ser um dos primeiros sinais de civilização. Decerto que, nos nossos primórdios, poucos sobreviviam até à velhice e quase todos acabavam por ser comidos por predadores. 



 

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

O conquistador

Depois de dizer que queria defender o direito de duas províncias ucranianas se manterem independentes, o Sr. Putin decidiu invadir a Ucrânia. Em 2014, tinha decidido anexar a Crimeia; em 2008, optou por dar cabo da Geórgia. Ou seja, acha-se um grande conquistador, à semelhança de nós portugueses. 

A Europa não fez nada para o impedir, pelo contrário, andou a aliciar a Ucrânia com uma possível entrada para a UE, o que levou à anexação da Crimeia. Concomitantemente, os americanos foram criticados por só saberem usar e abusar do seu poder militar, logo os EUA não têm nenhuma vantagem em interferir nas manobras de Putin, apenas avisam de que a situação não é muito boa. E daqui a nada começam a oferecer vistos aos refugiados.

Com ou sem invasão, Biden só vai durar um termo, logo nada mudou nos EUA. Siga para bingo...


terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Fact-checking Putin

Coincidências

A Rússia é o maior fornecedor de gás natural líquido da União Europeia; mas, em 2018, durante a administração Trump, os EUA assinaram um acordo com a UE exactamente para facilitar o acesso de gás americano ao mercado europeu. Desde então, as exportações americanas para a Europa aumentaram e, em Dezembro de 2021, metade das exportações dos EUA foram mesmo para a UE, o que constituiu um recorde. O Sr. Putin decerto que não está muito satisfeito com os americanos e europeus. 

Parece-me que o objectivo dos EUA é fazer à Rússia o que fez ao Médio Oriente: reduzir o seu poder de mercado. Dado que os americanos agora são exportadores de gás natural, quando a Rússia causa problemas que aumentam o preço, fica mais atractivo para os americanos exportarem. Tal como eu escrevi em 2015 sobre a Arábia Saudita, esta estratégia de manter preços de energia altos favorece os americanos.

Nos EUA, os preços domésticos de gás natural também aumentaram e muitos dos meus vizinhos andam no NextDoor a queixar-se da alta conta de gás natural que receberam no último mês (a minha conta de gás cá em casa foi de $377 referente ao período de 8 de Janeiro a 8 de Fevereiro, mas eu acendo a lareira muito frequentemente). Só que os americanos têm dinheiro para pagar a conta: queixam-se que são pobrezinhos, mas até estão bastante bem dadas as circunstâncias: a mediana dos activos líquidos de uma família americana é de mais de $121 mil. E mesmo os mais pobres têm acesso a programas que os ajudam a pagar a conta de energia. 

 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Feels like you're dying

"Are you sure you want to see it? You cannot unsee it once you do." foi este o aviso que a minha vizinha me deu quando estava a falar com a enfermeira da mãe dela, que me tinha perguntado se eu queria ver uma foto de uma paciente do "hospice" alguns dias antes de morrer. Respondi que queria ver, mas senti um enorme vácuo dentro de mim enquanto olhava para a imagem. 

Nunca me tinha ocorrido que alguém sobrevivesse assim, o corpo completamente gasto, a pele e a carne já em estado de decomposição. Não se vêem músculos, apenas a definição dos ossos cobertos por pele solta, drapeada que nem um tecido, intercalada por recortes de negro. Perguntei se tinha deixado de comer, mas não, naquela altura, a senhora continuava a comer três refeições por dia, mas o sistema digestivo já não devia funcionar o suficiente para levar os nutrientes aos órgãos.

Talvez o vácuo que senti antes, durante, e depois seja uma forma de aceitação: aquele corpo gasto também faz parte da nossa vida. Que alguém se agarre tanto a esta existência, que não morra sem levar tudo o que acumulou, que essencialmente é o que tem no corpo, impressiona. Na realidade, tudo o que fazemos ao nosso corpo afasta ou atrai a nossa morte. "Death is a blessing, in these circumstances" -- "a blessing", observava a enfermeira, uma palavra que raramente uso, mas que ouvi pela segunda vez esta semana. A primeira vez, fui eu que a proferi, mas a respeito de acontecimentos da minha vida -- os tais males que vêm por bem. 

Até agora, nunca tinha acompanhado de perto o crepúsculo da vida de ninguém a este nível. Todas as pessoas que me morreram não chegaram a ter um desgaste de vida tão avançado como o daquela senhora, mesmo o corpo da mãe da minha vizinha ainda não chegou a tal estado. É uma dádiva que recebo, este conhecimento que me dão, e sinto uma admiração enorme por pessoas como esta enfermeira que vivem na cúspide entre a vida e a morte, que dedicam a vida à curadoria da morte de alguém.

"My patients tend to live longer", diz-nos: ela constrói um laço emotivo com eles, a forma como fala, como lhes toca... Não trabalha das 8 da manhã às 5 da tarde; em vez disso, disponibiliza o seu número de telefone e acompanha as famílias dos pacientes fora das horas de expediente. Às vezes, quando ouço alguém falar dos direitos dos trabalhadores a não serem incomodados fora do horário de trabalho, sinto um profundo nojo porque sei que há quem não faça essa distinção e continue a trabalhar para benefício dos outros. Essas pessoas merecem reconhecimento, em vez de censura.

Tenho dormido em ciclos, costumo acordar a meio da noite e passo algum tempo acordada até voltar adormecer. Durante o dia, prefiro os dias nublados, acho a claridade demasiado ofensiva e só consigo sentir-me melhor perto do pôr do sol. Contei à minha vizinha os meus problemas de sono, a minha vontade de não fazer nada. Ela diz que decerto que há uma carga emocional que não posso ignorar por estar tão próximo da mãe dela. Talvez. Sinto que dentro de mim, há um misto de paz, aceitação, e rebeldia. 

Há algo que me puxa para seguir em frente, mas penso não quero que ninguém tenha tanto cuidado comigo quando estiver perto de morrer. Quero morrer antes, sem dar trabalho aos outros, apesar de sentir um enorme conforto em poder ajudar de cuidar de alguém. Não consigo resolver esta dicotomia interior.  

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Deduz-se então!

No outro dia, num comentário, um dos leitores mostrou-se preocupado com a questão de os arrendatários nos EUA não terem direito a deduzir a renda de casa. A dedução mínima nos EUA é de $12550 para uma pessoa individual e $25100 para um casal, ou seja, para parte da renda ser dedutível, teria de ser superior a $1046/mês para um indivíduo e $2092/mês para um casal. Estas rendas encontram-se facilmente nas cidades maiores, mas são consideradas altas fora das zonas urbanas. Depois, no caso de um casal, quem tem $2092/mês para uma renda é capaz de conseguir comprar uma casa e o governo federal tem várias formas de apoiar a compra de casa. 

Deduz-se então que ao ter uma dedução mínima, mas não permitir deduções de rendas, enquanto permite deduções de juros da compra de casa, o sistema americano distorce o mercado em pelo menos três formas: (1) torna as zonas não-urbanas mais atractivas para arrendamento do que as grandes cidades; (2) incentiva a compra de casa em vez do arrendamento, o que promove a acumulação de riqueza a longo prazo; (3) promove os estados com custo de vida mais barato e penaliza os estados mais caros.

Por vezes, estas distorções até são agravadas pelos governos dos próprios estados: por exemplo, a Califórnia limita a construção de novas casas e muitas cidades têm zoneamento bastante restritivo, logo o mercado imobiliário aprecia bastante, o que força as empresas a ter de pagar salários mais altos para atrair mão-de-obra. O efeito destas políticas é que muitas empresas têm vindo a mudar-se para estados com custo de vida mais em conta, como o Texas ou o Tennessee. 

Mesmo indivíduos reformados escolhem sair de Nova Iorque ou da Califórnia para ir viver noutros sítios onde possam esticar o seu pé de meia. Ainda por cima, ao vender a casa, não se paga imposto sobre a mais-valia porque o governo federal presume que a valorização da casa se deveu em parte ao esforço dos donos que a mantiveram.

E os pobres, como é que ficam? Imagine-se alguém que tem um emprego em que ganha o salário mínimo -- o salário mínimo federal é de $7.25/hora ou cerca de $14500/ano (multiplica-se o salário por hora por 2000 horas para chegar ao anual). Do ponto de vista dos americanos, não é desejável que haja muita gente a ganhar o salário mínimo, mas há empregos que pagam o salário mínimo em todo o lado, logo não é necessário a pessoa viver num sítio onde o custo de vida seja caro. 

Para além disso, os pobres têm direito a vários programas de apoio por via dos governos federal e dos estados. Se a pessoa escolhe viver num sítio mais caro, é uma escolha pessoal que o governo federal não acha que tem de subsidiar. Aliás, é esse mesmo o problema: enquanto que os portugueses têm um enorme afecto pela palavra subsídio e são indiferentes a impostos; os americanos detestam subsídios e impostos.



terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Tecnicalidades

Ninguém se pode queixar de ter um vida aborrecida por estas bandas porque, de vez em quando, fica tudo em pantanas. Na quinta-feira, poucos minutos depois de perdermos a electricidade, uma amiga minha enviou-me uma mensagem a propósito da nossa viagem a Dallas: ainda bem que tínhamos ido no fim-de-semana anterior. Mal sabia eu o fim-de-semana que me esperava. Durante mais de nove horas não tivemos electricidade, mas o tempo passou muito rápido. A minha preocupação maior era a mãe da minha vizinha. Uma pessoa debilitada como ela não pode estar exposta a oscilações de temperatura e passar frio pode ser mortal, logo a prioridade era encontrar algum vizinho que tivesse um gerador. Por sorte, o vizinho ao lado tinha.

Enquanto eu tratava da comida porque o meu fogão é a gás, o vizinho do lado apareceu e começou a avaliar a situação. Descansou logo a vizinha dizendo-lhe que a mãe não iria morrer por causa de uma tecnicalidade e trouxe o gerador para ligarmos a máquina de oxigénio e um aquecedor. Eu forneci o aquecedor portátil que tem controle de temperatura. Quando o ligámos acusava 12 graus centígrados no quarto, mas no espaço de minutos a temperatura aumentou uns cinco graus. Depois de ter almoçado e o quarto estar quente, a mãe da minha vizinha adormeceu e assim esteve o dia todo. Que suspiro de alívio, mesmo assim tínhamos medo que o apagão demorasse muito tempo e não conseguíssemos manter o nível de conforto.

A minha hipótese, que depois se confirmou, era que tinha sido uma sorte termos sido dos primeiros a ter perdido electricidade. Depois também vivemos numa vizinhança em que os cabos de electricidade estão sob a terra, mas claro que os cabos principais que fornecem electricidade à vizinhança não estão enterrados. Um amigo meu português em Houston aguardava a tempestade, que chegou lá horas mais tarde, e queixava-se que a infraestrutura dos EUA era uma porcaria. Um país tão rico em que falta electricidade e que usa madeira em vez de betão para os postes -- não bate a bota com a perdigota. Sabem o que eu digo? É pena os americanos não fazerem parte da UE e não serem subsidiados a fundo perdido para modernizar a infraestrutura...

A Europa não costuma ter os desastres naturais que existem nos EUA, para além de que a densidade populacional na Europa é muito maior. Depois também há o facto de a Europa ter sido reconstruída por causa da guerra, logo houve um esforço de modernização que até foi patrocinado pelos americanos. Aliás, é fantástico que os americanos se interessem mais por tentar criar melhor infraestrutura noutros países e não sintam que a do seu próprio país seja uma prioridade. É um povo meio maluco, mas quando há desgraças é bom ter um americano ao lado porque as coisas acontecem.

Há uns anos, ainda eu não vivia aqui, a electricidade faltou e a esposa do vizinho do gerador ficou muito frustrada, pois achava ridículo não ter electricidade, logo disse que ia comprar um gerador (funcionam a gasolina). O marido tentou explicar-lhe, sem resultado, que um gerador não fazia o que ela pensava; por exemplo, não ia poder ligar o secador de cabelo e as outras geringonças ao gerador. Ela ignorou-o e foi assim que eles acabaram por comprar um gerador, disse ele para concluir a história. E agora com gerador, a única coisa que lhe ligaram foram os carregadores dos telemóveis porque deram prioridade a manter a mãe da minha vizinha viva. Bendita obsessão por esticar o cabelo.

Enquanto eu andei nestas vidas até às 21h30m, os meus amigos portugueses -- os únicos que tenho aqui em Memphis, logo para mim valem o seu peso em ouro -- ficaram sem electricidade em Midtown cerca de duas horas depois de nós. A primeira noite passaram em casa, mas de manhã decidiram vir para minha casa. Assim, estivemos uns dois dias a cavaquear em português, a falar de cultura, história, etc. A filhota deles, que gosta muito da minha casa e anda a tentar convencê-los a comprarem uma casa igual, fazia video-conferência pelo telemóvel com a melhor amiguinha dela e conversavam e brincavam juntas durante horas. A infraestrutura dos telemóveis é uma outra coisa que é uma lástima por aqui, até porque é bastante caro. Quer dizer, depende muito do que se compra porque, entretanto, já há planos mais económicos que apareceram e que são populares com os imigrantes ilegais.

Por falar em imigrantes ilegais, na Terça-feira passada, vieram cá as senhoras da limpeza que também gostam muito da minha casa. A mais velha é da Colômbia e pediu-me conselhos acerca de que revista de decoração devia assinar. Sugeri que visitasse o Barnes & Noble para ver as que lhe agradavam, mas tenho-lhe dado imensas revistas antigas que tinha por aí. Ela, que me trata por tu, disse-me logo que eu estava convidada para ir visitar a Colômbia e ficava em casa dela, que tem vista para o rio e fica à beira da floresta tropical. Os macacos até costumam andar pelo jardim. 

A senhora tem menos de 50 anos, um curso superior, e já está reformada no país dela, tem uma casa novinha giríssima que mandou construir e que está completamente paga, ou seja, tem melhor vida do que eu e é ela que alegremente me limpa a casa. Só fica na América até a filha terminar o curso da universidade, mas a filha já disse que não quer regressar à Colômbia. No meio de toda a conversa, informou-me que na América só não trabalha quem não quer. Afinal, ela chegou aos EUA sem papéis, nem saber falar inglês, e conseguiu arranjar emprego e organizar a vida muito depressa. Os americanos não se orientam porque não querem: as mesmas tecnicalidades que afectam a infraestrutura.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Quentinhos

Estamos a meio da tal tempestade de gelo: choveu bastante e depois congelou. Em princípio irá nevar depois da meia-noite. À volta de 131 mil pessoas ficaram sem electricidade em Memphis, inclusive cá em casa, onde falhou por volta do meio-dia e apenas conseguiram reparar perto das nove horas da noite. Por sorte, tenho lareira e fogão a gás, logo a vida não é muito desconfortável quando podemos cozinhar e sentarmo-nos em frente à lareira.

A ironia de ter estado sem electricidade é que no ano passado, quando tivemos o super-nevão, os pássaros ficaram sem água porque congelou tudo, logo assim que as coisas normalizaram comprei um bebedouro aquecido para a passarada. Só que, sem electricidade, não adianta grande coisa. Mas não me estou a queixar, estamos todos bem.

De manhã, a vizinhança e o meu jardim estavam assim:

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Uma salgalhada

Por volta do Natal, fui jantar a casa de uns amigos portugueses e calhou falarmos em compra de casa e spreads bancários. Um dos meus amigos portugueses mencionou que nos EUA não divulgam a spread e na altura não respondi, mas fiquei a pensar naquilo. Na verdade, nos EUA não há spreads porque as hipotecas são agregadas em instrumentos financeiros que são vendidos a investidores em tranches. A entidade que cria o empréstimo não fica com ele, apenas cobra uma comissão por originar o empréstimo. Quem compra as tranches presume que terá uma certa rentabilidade, mas esta inclui a possibilidade de parte das hipotecas falharem, logo a rentabilidade depende do conjunto das hipotecas agregadas e não de uma em particular.

Todas as comissões que são cobradas aos compradores são divulgadas antes de se realizar a compra de casa; mas, em alguns estados, é comum o comprador pedir a quem vende a casa para pagar os custos de fechar o contrato (closing costs). Depois há também o facto de a maior parte dos empréstimos para compra de casa nos EUA ser a taxa de juro fixa, logo se houvesse um spread, este seria variável.

Recentemente, a Reserva Federal anunciou que provavelmente começaria a aumentar a taxa de referência em Março e conta fazê-lo várias vezes antes do final do ano. Quando isso acontecer, a maior parte das hipotecas existentes ficará na mesma porque têm taxas de juro fixas. Quem será afectado serão as pessoas que estão a comprar casa, pois terão de pagar uma taxa de juro mais alta. No entanto, o normal é os preços das casas diminuirem um pouco para que o pagamento mensal não fique muito diferente. Com os juros mais altos, os americanos têm uma maior dedução nos impostos, pois as despesas com juros de hipoteca são 100% dedutíveis no rendimento colectável, para hipotecas até $750 mil.

Há outros detalhes interessantes. Quase metade das hipotecas americanas são compradas pela Fannie Mae e pelo Freddie Mac, que são empresas cotadas na bolsa, mas com fins sociais (servem para ampliar o mercado de hipotecas, ou seja, garantem as hipotecas de pessoas que têm menos possibilidade de obter crédito) e garantidas pelo governo americano.

Muitas poupanças de americanos estão aplicadas em intrumentos financeiros compostos por hipotecas e também em acções da Fannie Mae e do Freddie Mac, logo parte da receita dos juros das hipotecas reverte para os próprios americanos ou para investidores internacionais que comprem estes instrumentos.

Isto é tudo uma grande salgalhada. Tenho de ter outra conversa com o meu amigo porque ele anda à procura de casa e vai ser a sua primeira compra.

Estamos todos de parabéns!

Portugueses e portuguesas, como dizia o General Eanes quando era Presidente da República Portuguesa, estamos todos de parabéns por mais uma vitória da democracia lusa. A abstenção continua com maioria absoluta, mas como quem cala consente, defere para o PS o exercício do seu mandato. Antes das eleições, Marcelo Rebelo de Sousa aconselhou a que o novo governo passasse uma nova lei eleitoral, logo devia exigir que tal lei fosse passada na AR no espaço de três meses como condição da tomada de posse do novo, quer dizer velho, governo.

Velho é a palavra de ordem: o povo português está muito envelhecido e vive na sombra do passado: acha que o PS de agora é o PS que saiu da derrota da ditadura -- aqui estamos a ser muito generosos porque a ditadura já estava ela própria envelhecida e mal se segurava. Com a população que temos é impossível retirar o PS do poder, logo pode continuar o processo de empobrecimento do país e agora mais celeremente, afinal a maioria absoluta tem de servir para alguma coisa.

Há também que felicitar a pseudo-oposição que temos: Rui Rio devia levar o prémio de pior líder da história do PSD porque o homem não desiste. Ventura, o nosso Chico-esperto de estimação, devia fazer uma auto-avaliação de quanta areia cabe dentro da sua cabeça. Ao BE e ao PCP, temos pena, mas é bem feita. Aos restantes, better luck next time.

Aos pseudo-intelectuais, comentadores, jornalistas, etc.: força na auto-censura, há uma página num futuro livro de história de Portugal dedicada a vós.