terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Tecnicalidades

Ninguém se pode queixar de ter um vida aborrecida por estas bandas porque, de vez em quando, fica tudo em pantanas. Na quinta-feira, poucos minutos depois de perdermos a electricidade, uma amiga minha enviou-me uma mensagem a propósito da nossa viagem a Dallas: ainda bem que tínhamos ido no fim-de-semana anterior. Mal sabia eu o fim-de-semana que me esperava. Durante mais de nove horas não tivemos electricidade, mas o tempo passou muito rápido. A minha preocupação maior era a mãe da minha vizinha. Uma pessoa debilitada como ela não pode estar exposta a oscilações de temperatura e passar frio pode ser mortal, logo a prioridade era encontrar algum vizinho que tivesse um gerador. Por sorte, o vizinho ao lado tinha.

Enquanto eu tratava da comida porque o meu fogão é a gás, o vizinho do lado apareceu e começou a avaliar a situação. Descansou logo a vizinha dizendo-lhe que a mãe não iria morrer por causa de uma tecnicalidade e trouxe o gerador para ligarmos a máquina de oxigénio e um aquecedor. Eu forneci o aquecedor portátil que tem controle de temperatura. Quando o ligámos acusava 12 graus centígrados no quarto, mas no espaço de minutos a temperatura aumentou uns cinco graus. Depois de ter almoçado e o quarto estar quente, a mãe da minha vizinha adormeceu e assim esteve o dia todo. Que suspiro de alívio, mesmo assim tínhamos medo que o apagão demorasse muito tempo e não conseguíssemos manter o nível de conforto.

A minha hipótese, que depois se confirmou, era que tinha sido uma sorte termos sido dos primeiros a ter perdido electricidade. Depois também vivemos numa vizinhança em que os cabos de electricidade estão sob a terra, mas claro que os cabos principais que fornecem electricidade à vizinhança não estão enterrados. Um amigo meu português em Houston aguardava a tempestade, que chegou lá horas mais tarde, e queixava-se que a infraestrutura dos EUA era uma porcaria. Um país tão rico em que falta electricidade e que usa madeira em vez de betão para os postes -- não bate a bota com a perdigota. Sabem o que eu digo? É pena os americanos não fazerem parte da UE e não serem subsidiados a fundo perdido para modernizar a infraestrutura...

A Europa não costuma ter os desastres naturais que existem nos EUA, para além de que a densidade populacional na Europa é muito maior. Depois também há o facto de a Europa ter sido reconstruída por causa da guerra, logo houve um esforço de modernização que até foi patrocinado pelos americanos. Aliás, é fantástico que os americanos se interessem mais por tentar criar melhor infraestrutura noutros países e não sintam que a do seu próprio país seja uma prioridade. É um povo meio maluco, mas quando há desgraças é bom ter um americano ao lado porque as coisas acontecem.

Há uns anos, ainda eu não vivia aqui, a electricidade faltou e a esposa do vizinho do gerador ficou muito frustrada, pois achava ridículo não ter electricidade, logo disse que ia comprar um gerador (funcionam a gasolina). O marido tentou explicar-lhe, sem resultado, que um gerador não fazia o que ela pensava; por exemplo, não ia poder ligar o secador de cabelo e as outras geringonças ao gerador. Ela ignorou-o e foi assim que eles acabaram por comprar um gerador, disse ele para concluir a história. E agora com gerador, a única coisa que lhe ligaram foram os carregadores dos telemóveis porque deram prioridade a manter a mãe da minha vizinha viva. Bendita obsessão por esticar o cabelo.

Enquanto eu andei nestas vidas até às 21h30m, os meus amigos portugueses -- os únicos que tenho aqui em Memphis, logo para mim valem o seu peso em ouro -- ficaram sem electricidade em Midtown cerca de duas horas depois de nós. A primeira noite passaram em casa, mas de manhã decidiram vir para minha casa. Assim, estivemos uns dois dias a cavaquear em português, a falar de cultura, história, etc. A filhota deles, que gosta muito da minha casa e anda a tentar convencê-los a comprarem uma casa igual, fazia video-conferência pelo telemóvel com a melhor amiguinha dela e conversavam e brincavam juntas durante horas. A infraestrutura dos telemóveis é uma outra coisa que é uma lástima por aqui, até porque é bastante caro. Quer dizer, depende muito do que se compra porque, entretanto, já há planos mais económicos que apareceram e que são populares com os imigrantes ilegais.

Por falar em imigrantes ilegais, na Terça-feira passada, vieram cá as senhoras da limpeza que também gostam muito da minha casa. A mais velha é da Colômbia e pediu-me conselhos acerca de que revista de decoração devia assinar. Sugeri que visitasse o Barnes & Noble para ver as que lhe agradavam, mas tenho-lhe dado imensas revistas antigas que tinha por aí. Ela, que me trata por tu, disse-me logo que eu estava convidada para ir visitar a Colômbia e ficava em casa dela, que tem vista para o rio e fica à beira da floresta tropical. Os macacos até costumam andar pelo jardim. 

A senhora tem menos de 50 anos, um curso superior, e já está reformada no país dela, tem uma casa novinha giríssima que mandou construir e que está completamente paga, ou seja, tem melhor vida do que eu e é ela que alegremente me limpa a casa. Só fica na América até a filha terminar o curso da universidade, mas a filha já disse que não quer regressar à Colômbia. No meio de toda a conversa, informou-me que na América só não trabalha quem não quer. Afinal, ela chegou aos EUA sem papéis, nem saber falar inglês, e conseguiu arranjar emprego e organizar a vida muito depressa. Os americanos não se orientam porque não querem: as mesmas tecnicalidades que afectam a infraestrutura.

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