Em termos de trabalho, os dias 5-12 do mês costumam ser os piores e nunca planeio nada pessoal para esta altura, mas Janeiro é um mês mais lento e, ao contrário de muitas pessoas, apesar de o meu trabalho ter algum stress, também é uma forma de eu relaxar e quase meditar. É basicamente uma metodologia para lidar com incerteza, que me permite a ilusão de controlo e de redução de ansiedade. Dá jeito ter um escape diário assim, especialmente quando a nossa vida pessoal se vira de pantanas.
Antes de ver o meu pai, não sabia se era necessário falar com ele e dar-lhe permissão para morrer, mas quando o vi achei que continuava com votade de viver. Estava com um aspecto péssimo, parecia uma múmia, com os músculos da cara distorcidos, o corpo encolhido, não conseguia fechar a boca. Falei com ele normalmente e tentei relaxá-lo, não demonstrei estar chocada com a sua aparência. Não era construtivo. Ao fim de meia-hora de conversar com ele, a cara já estava mais relaxada e a parecência física já estava a retornar. Ao despedir-me deixei-lhe instruções de que dependia dele o que iria acontecer a seguir. Nessa altura, ele ainda estava em estado crítico e não era claro se iria sobreviver.
Na Segunda-feira, estava muito melhor e fiquei mais descansada porque já estava fora do período crítico. Não sei se pareço ou se sou insensível, mas nesse dia trabalhei até à meia-noite e estava tão cansada que foi fácil adormecer apesar do jet-lag. Também não gosto da emocionalidade destas situações, sempre me incomodou desde que me conheço.
Os meus colegas de trabalho foram super-atenciosos, recebi mensagens da Turquia, Brasil, EUA, a perguntarem se estava bem, se havia alguma coisa que poderiam fazer por mim. Quando ainda não sabíamos que o meu pai tinha pneumonia, disse a uma colega americana pelo Teams a minha suspeita e ela imediatamente perguntou-me se ele estava mais para o sentado do que o deitado e eu dei instruções à minha irmã pelo WhatsApp para levantar a cama. Quase de instantâneo, o meu pai conseguiu respirar melhor. Essa minha colega é mais velha do que eu e o pai dela tem mais de 90 anos, mas ainda está operacional e em melhor forma do que o meu que só tem 80.
Até agora, temos tido imensa sorte, pois apesar de no Natal e Ano Novo haver poucos médicos e enfermeiros a trabalhar (também havia uma greve), todos foram atenciosos, pacientes, e abertos às nossas dúvidas e perguntas. Quando perguntei a uma enfermeira se dava para fazer um raio X aos pulmões ela disse que só um médico o poderia pedir e pouco tempo depois o médico apareceu e falou com a minha irmã. No dia seguinte, quando voltei a ver o meu pai por videoconferência, ele já estava medicamentado para a pneumonia. Alguns dias depois, no último dia que o vi antes de regressar aos EUA, eu e a minha irmã achámos que havia outra coisa nova, talvez uma infecção urinária ou algo parecido e voltámos a falar com o enfermeiro de serviço a quem expressámos a nossa preocupação e no dia seguinte, já estava a ser medicamentado para uma infecção na próstata.
Convenhamos que o factor sorte é enorme e quando há tanta coisa a "avariar" ao mesmo tempo começa a tornar-se muito difícil apanhar tudo. Nas notícias, é comum ver-se notícias do que falha, as coisas que correm bem não merecem a mesma atenção. Mas também é uma questão de preparação da família. Por acaso, há anos li um livro chamado "How We Die" que relata algumas das formas em que o nosso corpo falha levando-nos a morrer. Esse livro ajudou-me a compreender a doença da minha mãe na altura e agora também me ajuda com o meu pai, quanto mais não seja, para ter alguma bagagem para poder conversar com os médicos e enfermeiros de forma mais informada.
Para mim, é impossível não pensar na minha mortalidade quando confrontada com a mortalidade dos meus pais, mas desde há muito que tenho tendências mórbidas e que me tenho preparado para o inevitável. A meu ver, era importante ter recursos suficientes para que os meus pais pudessem ir para um lar ou se precisassem de cuidados mais especializados. Mesmo assim, não foi perfeito e agora acho que teria sido importante que o meu pai tivesse tido algum tipo de fisioterapia enquanto estava no lar e eu não arranjei isso. E, nos últimos meses, quando falei com ele ao telefone e ele me dizia que estava com dificuldade em falar, não suspeitei que houvesse algo a acontecer no seu cérebro. Mas pronto, talvez essa lição seja importante para mim própria daqui a uns ano -- só que eu sou péssima a pedir ajuda, ainda tenho muito a aprender.
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