terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Floricultura 20

Olha para a porcaria que fizeste.
Acabei de aspirar e já está tudo cheio de terra. Quem assim expostulava exasperada e exclamativa, era Dona Benedita, mulheraça firme como firme era o seu bigode. Vim do jardim, o que é que queres. Estive a plantar umas hortênsias, que, sabemos todos, são plantas saxifragácias também conhecidas por hidrângeas. Se voltas a interromper uma frase, seu metediço, levas uma tal estalada que nem sabes de que terra és. Teria que ser uma estalada bem firme esta com que me ameaçava o homem vindo do jardim para ter um tal efeito. E vai mesmo ser muito firme ou julgas que só o bigode da minha mulher é que é firme. Tanta exaltação só podia ter uma causa, o raspanete da mulher que se adivinhava no horizonte e que, a julgar por raspanetes anteriores, prometia ser longo e maçador. Mas quem é que te deu licença para estares aí a falar dos meus estados de espírito e do comportamento da minha mulher, seu safardana. O que é que tu sabes da minha vida, seu tratante. Continuava o sujeito a insultar nestes termos o narrador, que, já agora, sou eu, e tremiam-lhe as asas do nariz, sinal seguro de fúria contida mas prestes a rebentar. Mas qual sinal, que estás tu praí a dizer do meu nariz, fica sabendo que com este nariz já eu ganhei concursos e por causa dele já recebi muitos elogios e um dia destes até me pediram para o desenhar, seu imbecil. Lembrar-se-ão os leitores, assim espero, de outras histórias em que dei ao nariz grande atenção, fazendo dele até personagem importante de uma narrativa. Achas que nós nos vamos lembrar daquilo que tu escreves, seu presunçoso, assim expostularam os leitores. Já usaste esse verbo no início, seu desastrado,  não estamos aqui para ler coisas mal amanhadas, vê lá se te endireitas. Atiraram à cara do narrador o seu descontento. Essa palavra não existe, palerma, diz-se descontentamento. O narrador, do alto da sua omnisciência, coibiu-se de explicar aos leitores que a um escritor é permitido inventar palavras, que às vezes é a própria frase a exigir que se faça cair uma sílaba ou outra, e que com isso faz um favor à humanidade. Mau, se usas mais um verbo que seja a começar por ex, isto vai correr mal. Quem estava a pô-lo no seu lugar era eu, meninos. Esperem até chegar a vossa vez, ralhou o homem dos torrões de terra. Não apreciaram os leitores que lhes chamassem meninos e, a certa altura, voavam advérbios pelo ar e torrões de terra escura conspurcavam cabeças e eram ais e uis e biltre, velhaco, bandido, vilão, que enchiam os ares com a sua alternância de bês e vês. Virei-lhes costas e deixei-os nesta algazarra. Retomei a atenção que a princípio dei à mulher firme de bigode firme, e fiz avançar a narrativa. E tanto a fiz avançar que me pus a escrever que muitos anos depois foi descoberto um esqueleto enterrado no jardim, e desse esqueleto tinha já desaparecido o nariz, mas ainda não o bigode. Era mesmo muito firme, o bigode, não me enganei no adjectivo.

2 comentários:

  1. Pois...
    (1) Bigodes e Frases
    «...
    A Aurora a chorar! De que tempo isto é! Como a gente, sem querer, mostra n'uma idéa a sua certidão de idade e uma relíquia testemunhal da idade de pedra! Ah! os bigodes tingem-se; mas as phrazes - madeixas do espirito - são refractárias ao rejuvenescimento dos vernizes.
    ...»
    [Camillo Castello Branco in "A Brazileira de Prazins: Scenas do Minho", Ed. Ernesto Chardron, 1882, Introducção. pgs. 18/19]

    (2) Nariz: "Podemos conquistar alguém pelo nariz?"

    https://www.youtube.com/watch?v=h8SBqjTtG5Y
    (1,5 minutos)
    [Divulgação científica (experimental), por Mariana Carrito, do PsyLab - Laboratório de Psicologia Experimental e Aplicada do Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Aveiro]

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