quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Reportagem 20

A tristeza que se abateu este final de semana sobre a família t, da cidade de h, uma tristeza atávica e invulgar, uma tristeza como a que devemos sentir em dias de muita chuva assim que acabamos de ler um livro,
o livro pelo qual demos graças que estivesse um dia de muita chuva porque dias de muita chuva costumavam ser os melhores dias para se ler um livro, uma tristeza que também já foi costume sentirmos em dias de muito sol, principalmente ao meio-dia, não o meio-dia do relógio que, em verdade, pouco se distingue das dez da manhã ou das sete da tarde, mas o meio-dia do sol a pino sobre as nossas cabeças e da dissipação das sombras, expostos e sem lados escuros e por isso tristes que são nossas também as sombras e gostamos de nos ver como contornos nos passeios e nas paredes e gostamos de ser mutáveis, esticados agora, comprimidos ali, uma tristeza como a de pensar nos males do mundo e do tempo que ainda falta para vivermos nele, uma tristeza como a de pensar nas maravilhas do mundo e no tempo que já não temos para as ver, essa dupla tristeza que é a da nossa separação, a de não fazermos, em verdade, em verdade, parte do mundo, chegamos a ele já feito, deixamo-lo ainda por fazer, uma tristeza para a qual já não temos tempo, fez com que cada membro da referida família estacasse repentinamente e a meio das várias tarefas que levavam a cabo. O senhor t, para espanto dos presentes e espanto maior ainda de quem estava do outro lado da linha, interrompeu a conversa telefónica com um importante cliente da firma onde trabalha, e, de braço sempre erguido em ângulo e mão sempre segurando o aparelho junto da orelha, não disse mais uma única palavra. Presume-se que terá deixado também de ouvir tal como deixou de falar. A senhora t, dirigindo-se para o emprego depois de levar os filhos à escola, parou num semáforo vermelho e deixou de ver as cores que se sucediam, o verde, o amarelo, o vermelho, o verde, o amarelo, o vermelho, verdamarelovermelho. Presume-se que terá deixado também de ouvir as buzinas, os gritos, os palavrões. A menina t, com as mãos nas alças da mochila, suspendeu o passo apressado pela campainha e deixou de prestar atenção aos encontrões dos colegas, tão imóvel como os rochedos que não são arrastados pelas correntes dos rios, mais imóvel do que as árvores apanhadas pela força dos ventos, dobradas e elásticas. O menino t esqueceu-se da equação que resolvia no quadro branco com uma caneta azul e abandonou incompleto o desenho do alfa, para irritação do professor e gáudio dos alunos, pouco habituados a ver pessoas paradas. Psicólogos, psiquiatras, psicanalistas e economistas foram chamados a dar os seus pareceres e deram-nos, expuseram as causas de estados tão absortos, propuseram métodos de intervenção e calendários terapêuticos, mostraram-se compassivos uns, clínicos e frios outros, debateram e constituíram painéis, responderam às perguntas do público, rodearam de actividade e frenesim os tristes, a triste família t, de cuja recuperação daremos conta assim que houver progressos e assim que regressarmos todos à normalidade.

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