terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Um (relativo) fracasso retórico

Baseado nos escritos de David Bromwich, um professor de literatura em Yale, Rogério Casanova elucida-nos, na última edição da Ipsilon, sobre o “fracasso retórico” de Obama. Um fracasso, diga-se, imprevisto por todos, a começar pelos seus detractores. Desde o início, os seus críticos mais acérrimos limitaram-se a prever uma quebra inevitável de popularidade quando a retórica embatesse no duro pavimento da realidade. Partiram, todavia, do pressuposto errado de que as “inquestionáveis faculdades retóricas” de Obama se manteriam intactas.

A que se deveu afinal esta surpreendente degeneração retórica? Casanova conclui que “nenhuma retórica sobrevive muito tempo ao desgaste de nunca querer contrariar ninguém”.

Obama é um mediador genial, cujo principal fito parece ser conciliar tudo e todos. É possível conciliar posições que distam pouco uma da outra. Desgraçadamente, não é possível conciliar posições situadas em extremos opostos - o mais certo, nestes casos, é acabar por ser desprezado e odiado por ambas as partes. Por outras palavras, Obama perdeu (ou nunca teve) a noção do limite possível das distâncias e o centro nem sempre é a melhor posição para tomar decisões.

Ainda hoje ninguém percebe, por exemplo, o que é que ele pretendia exactamente com a reforma do sistema de saúde. Obama é avesso ao risco e evita, sempre que possível, tomadas de posição. Prefere equilíbrios e consensos, que adora embrulhar com vacuidades, às vezes dignas de um António José Seguro. Sim, sim, o fracasso já atingiu proporções desta magnitude.

E, no entanto, como o próprio Casanova reconhece, o mais certo é Obama voltar a ganhar as eleições deste ano. Porquê? Casanova não explica. E eu também não.

12 comentários:

  1. Zé Carlos,
    Um dos principais motivos será a falta de um candidato republicano à altura.
    Um sorriso do Arizona!

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  2. Como é que concilias esta opinião que tens sobre a incapacidade de Obama com o facto de Obama ter sido o primeiro presidente a conseguir criar algo que se aproxime a um sistema nacional de saúde a que os republicanos tanto se opõem? Não será essa opinião algo enviesada?

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  3. comparar o Obama com o António José Seguro é demais. Sem querer parecer demasiado arrogante, eu já nem oiço o líder do PS.

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  4. Realmente, é demais.

    Sugiro a leitura de
    http://www.washingtonpost.com/politics/will-the-nominee-shape-the-gop-or-will-the-gop-shape-the-nominee/2012/01/02/gIQAeuM5WP_story.html?hpid=z1

    a propósito das primeiras primárias republicanas no sintomático Estado do Iowa.

    Obama até pode perder mas não porque seja um indeciso. O presidente dos EUA tem, mesmo com maioria no Congresso e no Senado, um poder muito restringido.

    Se perdeu a maioria no Congresso tal facto deveu-se, em grande parte, ao alinhamento de alguns democratas com os republicanos na discussão e votação do sistema de segurança social.

    Irão os republicanos unir-se à volta das teses do Tea Party? Se forem, conquistarão a Casa Branca? Se assim for, Obama conseguiu o impensável: Levar a cabo uma reforma, ainda que mínima, que a maioria dos norte-americanos afinal rejeita.

    E, sendo assim, mesmo mínima, acabará.

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  5. Comento o seu post por partes:
    1) Obama é um bom discursante que os media, com uma tendência natural para reduzir personalidades públicas a uma característica que as defina completamente (veja-se Pinto da Costa e a "ironia" ou Bush e a "ignorância"), elevaram a génio da retórica. Na narrativa que predomina foi o seu dom para vender o discurso da "mudança" que bateu McCain/Palin, quando na verdade terá sido a má situação económica do país a matar a candidatura apoiada pelo partido do incumbente Bush. Para manter a consistência da narrativa, os mesmos media associam agora o suposto fracasso político de Obama ao seu "fracasso retórico".
    2) Obama não tentou conciliar posições por ser um mediador por natureza. Fê-lo porque, tal como diz o comentador Rui Fonseca, as políticas que gostaria de implementar estariam destinadas a ser quase sempre vetadas pelo partido Republicano e até por membros do seu próprio partido. O centro não será certamente a melhor posição para tomar todas as decisões, mas no caso de Obama, era a única posição viável.
    3) Obama tem fracassado? Se perguntarmos a republicanos, a resposta é óbvia. Mesmo alguns (bastantes) democratas responderiam que sim. Mas será isso prova do seu fracasso, ou o resultado de expectativas (desadequadamente) elevadas e da existência de uma oposição que, mais do que isso, é uma força de bloqueio?
    4) Obama vai ganhar as eleições? É cedo para ter certezas. Mas como diz a Maria Bê no seu comentário, as alternativas escasseiam. No mínimo (e aquilo em que eu acredito está longe deste mínimo) atrevo-me a dizer que Obama é tão sério, está tão preparado e é tão capaz como o melhor que o partido Republicano tem para oferecer neste momento. Obama é um mau presidente aos olhos de muitos porque não foi capaz de corresponder às expectativas que se criaram à sua volta; inversamente, eu diria que a única maneira de qualquer dos candidatos republicanos (excepto Huntsman) vir a ser um bom presidente é fazer o mesmo.

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  6. Começando pelo comentário da Maria Bé. Sem dúvida, a mediocridade dos candidatos republicanos explica em grande parte a eventual reeleição de Obama.

    Sobre a minha “opinião algo enviesada”, referida pelo Luís, sublinho que, à semelhança do Rogério Casanova (e o meu post está muito colado ao artigo dele) também destaquei a genialidade mediadora de Obama. O Casanova, por acaso, não se refere à reforma do sistema de saúde, mas o que eu pretendia dizer é que se chegou a uma reforma sem ninguém perceber com exactidão o que Obama defendia. Dito de outro modo: até que ponto o “novo” sistema de saúde se aproxima ou não do idealizado por Obama? É a esta pergunta que ninguém sabe responder. Com este exemplo pretendia apenas ilustrar a tendência de Obama em não assumir posições claras - podia, claro, dar muitos outros exemplos ilustrativos. Mas, já agora, o sistema americano de saúde continua a ter pouco a ver com um sistema nacional de saúde à europeia, em que há um acesso universal aos cuidados de saúde. Não conheço bem os contornos das mudanças introduzidas, mas, se bem percebi, basicamente o que se fez foi estender os seguros de saúde (privados) a toda a gente – embora, presumo, os mais pobres e desempregados passam a ter acesso apenas a seguros muito modestos. Como sabes (e sabes de certeza muito melhor do que eu), o mais próximo que os americanos têm ao nosso (europeu) sistema nacional é o medicare e o medicaid que juntos continuam abranger a mesma minoria da população americana (cerca de 15%).

    Voltando à “incapacidade” do Obama. O problema é que a sociedade americana está neste momento dividida ao meio, com posições extremadas – de um lado os defensores de uma espécie de, digamos, “social-democracia” europeia e do outro os radicais do Estado mínimo. É, por isso, que o conciliador/mediador Obama surge como o homem errado, no momento errado.

    Sobre a comparação com o António José Seguro, que o Fernando considera ser “demais”. Compreendo o espanto. Referia-me, todavia, apenas ao conteúdo das afirmações do Obama, não ao estilo, que não tem realmente comparação possível. Fui reler o texto do Casanova e, por acaso, ele não refere o Seguro, refere o Pedro Santana Lopes:

    “Quando Obama, invocando o seu Pedro Santana Lopes interior, afirma que ‘não podemos ganhar o futuro com o Governo do passado’, Bromwich expõe a vacuidade com duas óbvias interrogações: o que é, exactamente, um ‘Governo do passado’? E o que é que pode sequer significar a expressão ‘ganhar o futuro’?

    Entre o Santana e o Seguro, venha o diabo e escolha.

    Por fim, o Rui Fonseca não considera Obama um indeciso ou, pelo menos, não acha isso relevante no desfecho final das eleições. Um homem que não sabe bem o que quer ou, se sabe, não o mostra, é o quê? Podemos não lhe chamar indeciso, mas coisa boa não é.

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  7. Os argumentos de DFQ são interessantes e dão-me que pensar. Concordo completamente quando diz que os media "têm uma tendência natural para reduzir personalidades públicas a uma característica que as defina completamente".

    Sem negar que a má situação económica desfavoreceu (injustamente) McCain (que aprecio), discordo de DFQ quando parece subestimar a importância das capacidades retóricas de Obama no resultado das eleições de 2008. Antes de bater McCain, Obama já havia batido a super favorita Hillary Clinton. Aliás, em Janeiro de 2008, quando começaram as primárias, quantos apostavam na vitória de Obama para candidato pelo partido democrata? Poucos, certamente.

    Temos tendência a esquecer que o poder da palavra é o maior dos poderes. A história dá-nos muitos exemplos de homens que arrastaram milhões através do poder do verbo – basta recordar Cristo (um génio do bem) e Hitler (um génio do mal, é certo, mas mesmo assim um génio político e da palavra).

    Obama não ganhou as eleições a vender ideias, mas a vender histórias, mais concretamente a sua história. Se virmos bem, as ideias estiveram sempre ausentes - desde a primeira hora. Yes, we can, embora eficaz em termos comunicacionais, reflecte bem esse vazio. Podemos, o quê, afinal? Obama, no fundo, obteve uma legitimidade democrática para a “mudança” em geral mas não para as mudanças x, y ou z, que ele nunca especificou. Estava, por isso, provavelmente condenado à mediação e a tentativas de conciliação.

    Ao contrário de DFQ, penso, todavia, que Obama é um mediador nato – e daí ter conseguido algumas reformas, ainda que mínimas (como diz o Rui Fonseca). O ponto, como referi no comentário anterior, é que, nos EUA, os tempos não estão para mediadores. Obama é, repito, o homem errado, no lugar errado, no momento errado.

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  8. " Mas, já agora, o sistema americano de saúde continua a ter pouco a ver com um sistema nacional de saúde à europeia, em que há um acesso universal aos cuidados de saúde." -- José Carlos

    O seguro de saúde passa a ser obrigatório. Quem não tem dinheiro é financiado pelo Estado. Não conheço os detalhes, mas parece-me ser muito similar ao sistema alemão. Sobre o Obamacare, escreve a Ann Coulter, uma maluca republicana que estudou na Cornell University:

    "America will begin its ineluctable descent into becoming a worthless Western European country, with rotten health care, no money for defense and ever-increasing federal taxes to support the nanny state. "

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  9. " ...nos EUA, os tempos não estão para mediadores..."

    Não percebo.
    Continuando, como exemplo de intervenção de Obama no sistema de saúde, se não houvesse mediação o que é que haveria?

    Seria preferível não haver nada?

    Se os tempos não estão para mediadores, estarão para os radicais do Tea Party?
    Oxalá não estejam.

    A xenofobia, o racismo, o recuo civilizacional, estão-lhe atrelados.

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  10. A mediação é uma qualidade importante na política. Não por acaso se costuma dizer que a política é a arte do possível. Mas uma coisa é fazer mediação partindo de uma posição clara e transparente; outra é deixar os outros à batatada enquanto nos colocamos a pairar, na posição confortável de árbitro neutro. Obama é um mediador (genial) do segundo tipo. Assim se explica que tenha obtido as tais “reformas mínimas”(e só podiam ser mínimas, dadas as qualidades do homem) no sistema de saúde – cujos méritos não discuto por não as conhecer bem. E assim se explica também o tal “fracasso retórico”, invocado sobretudo pelos seus (ex) apoiantes mais entusiastas. Repito a conclusão de Rogério Casanova: “nenhuma retórica sobrevive muito tempo ao desgaste de nunca querer contrariar ninguém”.

    Os EUA correm sérios riscos de bloqueio. São um país dividido ao meio, em que as posições se extremaram imenso nos últimos tempos. Nestas circunstâncias, o poder de acção de um mediador (embora importante) é limitado, sobretudo com as características do Obama. É preferível alguém com ideias claras sobre o que há a fazer e com capacidade retórica para convencer e arrastar a maioria.

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  11. Em relação ao Obama existem, de facto muitos desiludidos. Mas parece-me que a culpa era dos próprios que andavam totalmente iludidos com a eleição de Obama. Pensavam que Obama era um novo messias, sem sequer terem em atenção o triste fim do anterior Messias. Até o Nobel lhe deram pelos tremendos contributos para a paz no mundo.
    Agora descobriram que o Obama é um presidente como os outros, que enfrenta as mesmas dificuldades que os outros, as mesmas ameaças externas e que, portanto, tem a mesma margem de manobra política que os outros, ou seja, pouca.

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  12. " ...(Obama), tem a mesma margem de manobra política que os outros, ou seja, pouca."

    Tal e qual.
    Aliás, Obama acaba de forçar uma nomeação de Richard Cordray para presidir ao "Consumer Financial Protection Bureau", entre outras nomeações, e já está a ser acusado de abuso de poder.

    Ver para crer, aqui

    http://www.washingtonpost.com/opinions/obamas-recess-appointments-are-unconstitutional/2012/01/05/gIQAnWRfdP_story.html

    Entretanto notícias recentes dão conta que em Dezembro houve uma criação de 200 mil empregos, reduzindo a taxa de desemprego para 8,5%.

    Mesmo do lado da economia, onde ele depende muito mais da sorte do que dele, as coisas parecem estar a compor-se.

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