segunda-feira, 4 de maio de 2020

De desconfinado a desconfiado: reflexões de um velho


Há quarenta e sete dias que não saía de casa. Saí hoje, uma vez que disciplinadamente me foi permitido fazê-lo: fui desconfinado! Não o digo com azedume. Compreendi muito bem que o que me pediam tinha fundamento e abdiquei, com pena mas sem esforço, do hábito que há uns três anos criara de caminhar, todos os dias, perto de cinco quilómetros. Isto a bem da minha saúde futura. Porque, apesar dos meus 84 anos, continuo a pensar que tenho futuro. É evidente que eu sou um privilegiado: estou na minha casa, suficientemente ampla e confortável, com todos os meios de comunicação actualmente disponíveis, com a minha Mulher, e com a assistência da Filha que, embora a distância, continua diariamente connosco, partilhando até, via Skype, as refeições festivas das datas que calharam neste tempo esquisito, os dias do Pai e da Mãe e o dia dos meus anos. Penso muitas vezes em quem não tem esta sorte, os que vivem em lares ou sozinhos, sem família, em condições precárias. Reconheço a dificuldade em tentar resolver o problema, mas esse teria de ter tido, porventura, maior atenção.


Tenho lido, e ouvido, opiniões diversas sobre a situação dos velhos nesta pandemia. (Velhos, por que não? Tal como nunca troquei a palavra cego por invisual, não irei usar idoso por velho). Desde que o general Ramalho Eanes recusou o potencial ventilador para o ceder a um jovem, caso lhe acontecesse adoecer com o Covid-19, algumas vozes levantaram a questão: o que vale a vida de um velho (face aos mais novos, e, até, face à situação económica)?

Não terei pensado nisso muitas vezes, mas quando era jovem e mesmo numa idade madura nunca me terá passado pela cabeça que chegaria aos 84 anos. Em dois momentos da minha vida estive gravemente doente – e sobrevivi. Há 20 anos tive um desastre de automóvel e saí ileso: disse, na altura, que a partir desse momento estava a viver em tempo emprestado. Mas continuei em frente, rumo ao futuro.

Vivo, agora, como todos nós, esta experiência estranha de estar no meio de uma pandemia. Agrada-me que o Estado, em quem sempre confio, nos proteja definindo as regras que quem competentemente aconselhou. Agrada-me que especificamente proteja os de mais idade ou vulneráveis por outros motivos.

Semanas antes de se ter consciência do vírus, discutiu-se com vigor o tema eutanásia. De um momento para o outro, deixou de ser tema. Para, curiosamente, aparecerem (mais ou menos veladamente) opiniões que, depuradas de “ses” e de “pois”, poderiam traduzir-se por isto: deixem lá os velhotes morrer, já não fazem falta, e confiná-los (porque são muitos) arruína a economia. Ou seja, a proposta de uma eutanásia a favor da economia!

Talvez eu não esteja a ver bem. Mas, após ter sido desconfinado, passei à situação de desconfiado. Eu saí hoje, para, em vez de andar cinco quilómetros, andar apenas dois e meio. E o sentimento que me tomou foi estranho. Nas ruas, para além das máscaras que nem todos usam, as pessoas ao cruzar-se tentam o mais possível criar distância. É: as pessoas, mesmo as mais jovens (nem todas, claro), estão desconfiadas.

Não seria melhor continuar em casa? Eu até acho que sim, mas pensando bem, se continuarmos a ter alguns cuidados, até pode acontecer que a ansiada vacina apareça mais cedo do que se pensa. E eu tinha mesmo de sair: a primeira coisa que fiz foi procurar no barbeiro mais próximo quando era possível cortar o cabelo. Ele é pouco, mas está um caos!  

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