segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Gerações de economistas portugueses

Andarmos a fingir que os nossos défices estavam abaixo de 3% deixou-nos completamente entalados. Arranjámos um sarilho de que só com muita inteligência sairemos. Inteligência e pouca politiquice.
Teodora Cardoso in Memórias de Economistas (2006) 

A propósito da vinda de Teodora Cardoso à Universidade do Minho fui reler a sua entrevista a Helena C. Peralta e Sónia M. Lourenço, publicada no livro Memórias de Economistas, em 2006, pela Revista Exame. Este livro de entrevistas aos economistas das primeiras gerações do ISCEF – incluindo, entre outros, José Silva Lopes, Manuel Jacinto Nunes, os irmão Pinto Barbosa ou Mário Murteira -, é muito interessante. Primeiro, porque nos descreve como estes economistas construíram as suas carreiras, iniciadas nas décadas de 50 e 60. Segundo, porque ficamos a conhecer a sua visão em relação a alguns episódios da história da economia portuguesa, beneficiando de serem contados na primeira pessoa. 
O Luís Aguiar-Conraria, na entrevista da passada sexta-feira ao jornal Sol, disse que os economistas portugueses vivem no seu mundo e nos seus modelos. Apesar de alguma coisa ter mudado desde que a crise financeira internacional atingiu a economia portuguesa, a verdade é que muitos dos melhores economistas portugueses continuam a dedicar pouca ou nenhuma atenção aos problemas da economia portuguesa. A ausência dessas vozes torna o conhecimento e o debate público sobre os problemas e desafios que a economia portuguesa enfrenta mais pobres.       
As primeiras gerações de economistas portugueses construíram as suas carreiras em instituições públicas como o Banco de Portugal, em gabinetes de estudos do Governo ou no próprio Governo. Em muitos casos partiram do zero – eram os primeiros economistas, não havia dados, não havia modelos. A actividade de economistas como José Silva Lopes, Manuel Jacinto Nunes, João Salgueiro ou Teodora Cardoso centrou-se nos problemas da economia portuguesa. Eles procuraram compreender as mudanças e os desafios de processos como a adesão à EFTA, o primeiro choque petrolífero, as mudanças radicais nas políticas orçamental e monetária no pós-Estado Novo, as crises da balança de pagamentos e as primeiras intervenções do FMI ou a integração da economia portuguesa na União Europeia.
José Silva Lopes era o economista português que eu mais gostava de ouvir falar. Teodora Cardoso é também uma das pessoas que melhor conhece os problemas da economia portuguesa - na palestra de hoje fez um excelente enquadramento dos limites da política orçamental no contexto da UEM. 

Reproduzo aqui alguns trechos da entrevista, de 2006, a Teodora Cardoso do livro Memórias de Economistas, que me parecem oportunos no contexto actual:

“Com os programas do FMI nos anos 70 Portugal, temporariamente, equilibrou uma série de coisas, nomeadamente a balança de pagamentos. Isso deu-nos acesso a algo que não tínhamos: endividamento externo. Mas aí, mais uma vez, repetimos o tal modelo. Gastámos enquanto houve! Esses anos, de 1980 a 1982, foram anos de gastar e de agravar o saldo da balança de transacções correntes. Com uma agravante: não existiam estatísticas fiáveis. (…) As estatísticas começaram a ser compiladas, mas não eram divulgadas. Nem dentro do Banco (de Portugal)! Era outro departamento. Nós sempre tivemos a mania dos segredos! (…) O Banco de Portugal à antiga. Levou muito tempo, mas depois mudou. E isto ainda está presente, em parte, nalguns vícios que vemos na administração pública. Cada um sabe um bocadinho e agarra-se ao bocadinho que sabe.”

“(sobre o período entre 1980 e 1982) A balança de transacções correntes estava a piorar. Sobre a dívida externa nada sabíamos, mas estava de facto a aumentar. (…) O que significa que o saldo em dívida estava sempre a subir, até ao momento em que os bancos decidiram que se chegara ao ponto em que não concediam mais crédito. Isto aconteceu no início de 1983. É engraçado, vendo em retrospectiva. Os salários caíram, o desemprego aumentou, o PIB caiu, a inflação subiu. Mas, apesar de tudo, as pessoas não se aperceberam da gravidade da crise. Se não a tivéssemos resolvido rapidamente teríamos ficado sem capacidade de importar fosse o que fosse. Porque, literalmente, não tínhamos um vintém em divisas e não tínhamos qualquer capacidade de endividamento. Esgotámos tudo.”

“(sobre o acordo de 1983 com o FMI) Um acordo muito mais duro do que os anteriores (…). Implicou tomar em mãos uma série de coisas muito complicadas, e cuja origem básica era o Orçamento do Estado. O orçamento foi sempre acomodatício, para dizer o mínimo. Em geral, era mesmo expansionista. E a política monetária não podia compensar isto indefinidamente porque gerava crises sucessivas. A uma crise seguia-se um período de estabilização em que se tomava medidas, ganha-se novo fôlego e capacidade de endividamento, e depois endividávamo-nos outra vez.”

“Enquanto o Orçamento for visto como uma forma de cobrir despesas, significa que ele serve para financiar a política. Prescindir disso implica mudar todo o sistema político português. O que acho que é necessário e indispensável, mas levar os políticos a fazer isso é muito complicado. Não sei quem é que nos vai obrigar. (…) Andarmos a fingir que os nossos défices estavam abaixo de 3% deixou-nos completamente entalados. Arranjámos um sarilho de que só com muita inteligência sairemos. Inteligência e pouca politiquice.”

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